Espíritos rebeldes segundo Oscar Silva

 





Quando 1924 começou, eu tinha nove anos de idade e um espírito cheio de histórias de animais faladores, palácios encantados, casas mal-assombradas e pessoas com sombra do Demônio. Neste ano, o Ipanema, que só vê água corrente em épocas de muita chuva, permaneceu oito meses sem dar vau, deixando até a impressão de se haver transformado em rio permanente. Foi-nos a mais gostosa e duradoura diversão da época: vermos, dias seguidos, as canoas atravessando o rio e gazearmos a escola para "correr carneiro" nas cachoeiras do Juá e Poço dos Homens. Longe estávamos de sentir ser o excesso de chuva e de água no rio prenúncio de anos seguidamente secos ou quase secos, como o foram os de 1925 a 1929.

Aquela cheia e aquela água tinham arrasado tudo. A lavoura encharcara, nasceu todo na vagem o feijão sertanejo. Em 1925, passaram por ali as forças que procuravam combater a Coluna Prestes e, embora comprando e pagando, levaram consigo o restinho da safra. Em 1926, Lampião percorreu o município, com 106 homens bem montados e armados, queimou o povoado de Olho D'Água das Flores, incendiou propriedades e levou o dinheiro dos agricultores. 1927, que seria outro ano seco, encontrou assim um sertão já desgraçado de tanta calamidade.

Tinham sido em vão as promessas mesmo roubados e jogados de um ponto para outro, os santos pareciam de olhos fechados e ouvidos moucos às súplicas do sertão. Daí em diante, muita gente dizia ter ouvido uma chocalheira danada, afirmando alguns tratar-se de mula sem cabeça, correndo da cidade para a areia do Ipanema. O espírito santanense estava preparado para crer em tudo o que lhe dissessem; poucos eram os descrentes. Dias depois circulava no jornal "PANEMA" e em suas colunas dava a notícia de uma grande pedra em Olho d'Água do Cajueiro. A pedra começava a apresentar uma enorme fenda que parecia produzida por uma estranha força partida do centro do rochedo para a periferia. Mal arrefecia a história dessa pedra em que o articulista falava de "segredos da natura" eis que várias pessoas ficavam noites seguidas sem dormir até quase madrugada, a fim de ver um sinal no céu e ouvirem o sino que plangia lá para o mundo das estrelas. O assunto do dia era o que se tinha visto ou ouvido durante a noite. Ferviam as discussões pró e contra aqueles "fatos". O que ninguém queria mais discutir era o fato real e concreto da ausência de chuvas. Para quê? Aquilo era tão visto e sentido, que o seu assunto só dava tristezas e aborrecimentos.

Foi nessa época, durante essa fase de nervosismo, que surgiu mais uma novidade: uma moça de Poço das Trincheiras andava por cima das cercas, atuada com uma falange de espíritos (já não se falava em sombras de demônios, eram espíritos mesmo). Alguém teve a curiosidade de sair de Santana e ir até ao Poço, somente para ver a moça dos espíritos. Mas não foi preciso repetir essas viagens o fenômeno transportou-se para a cidade, onde apareceu uma meretriz obsedada também com dez ou doze espíritos, entre os quais um que cantava:

- Ai, amô perdido!
- Ai, amô perdido!
- Quem me matou
- Foi dona Regina.

A porta da mulher ficava cheia de gente. Gente no terreiro, gente pelas calçadas da rua, gente até pelos telhados. E os espíritos a entrar e sair do corpo da médium, como a gente entrava e saía do rio nos momentos de banho. A minha curiosidade de criança arrastava-me sempre para perto da mulher, com a intenção única de ver a cara de um espírito. Certo dia, após despertar do "transe", disse ela: "Lá vai ele. Passou por debaixo das pernas daquele menino". E apontou para mim. Arrepiei-me todo e corri espavorido para casa. Tinha a impressão de que minha roupa, os bolsos, o chapéu, tudo estava cheio de espíritos. Mesmo assim, era amanhecer o dia, tomava café e largava-me para a casa de "Amor Perdido". Aquela mulher, porém, perdeu logo a mediunidade com o aparecimento de um sério concorrente.

Nunca me interessei pela origem do sobrenome de Antonio Borreguinho. Se era outro o seu verdadeiro nome, nunca procurei sabê-lo. Era assim que toda gente o conhecia na redondeza e foi como Antônio Borreguinho que ele entrou para a história espirítica de Santana do Ipanema.

Certa feita, assistíamos às manifestações de "Amor Perdido" quando a notícia arrastou o povo para a casa de Borreguinho: ele também estava com espíritos. Corri até lá. Cinco ou seis homens lutavam para conter o médium. O ritmo era o mesmo: coices, pancadas nas paredes e depois a falação idêntica à de "Amor Perdido". Mas, tratando-se de homem, havia sempre o que atrair para ali a massa de desempregados frequentadores da casa da meretriz. E "Amor Perdido" foi caindo no esquecimento.

Lucas Farias era um dos poucos descrentes daqueles fatos. Dizia abertamente que só acreditaria naquilo quando agarrasse Borreguinho e o visse escapulir-lhe dos músculos possantes. Certo dia, um dos mais crédulos correu e chamou Lucas para tirar a prova dos nove. E eu vi Lucas chegar com o seu corpanzil, agarrar-se a Borreguinho e não o conter senão com auxílio de outros homens.

Quando os caminhões dos revoltosos chegaram a Santana em 1930, já ninguém se lembrava nem queria saber de "Amor Perdido" nem de Antônio Borrequinho com os seus espíritos. Eu, porém, dele não me esquecia. Tínhamos viajado para Penedo em busca de trabalho. O navio "Comendador Peixoto" singrava as águas barrentas do São Francisco. Sentado num caixote, deliciava-me com o panorama das serras que ladeiam o velho Chico, chamado rio da união nacional. À minha frente, debruçado para a água, um tiquinho de homem parecia imerso em profunda meditação. Era Antônio Borreguinho. Desviei a vista das serras e fiquei mirando o fundilho murcho daquele homem que mais parecia um menino. Lembrava-me dos espíritos, de Lucas Farias e de outros homens agarrados com ele. E no meu pensamento somente uma coisa era lógica - Borreguinho não tinha um décimo daquela força, e, mesmo que fosse uma força estranha, só poderia ser do espírito de ¹Maciste, ainda pensando na luta contra a morte.


Oscar Silva

Abril, 2025


¹Maciste é um dos personagens recorrentes mais antigos do cinema, criado por italianos. Ele está presente em toda a história do cinema italiano, da década de 1910 até meados da década de 1960. Ele é geralmente retratado como uma figura semelhante a Hércules, utilizando sua força maciça para realizar feitos heroicos que homens comuns não conseguem. Muitos dos filmes italianos da década de 1960 com Maciste foram renomeados em outros países, substituindo-os por nomes mais populares (como Hércules, Golias ou Sansão). É um personagem que tem sua origem na mitologia grega.


A crônica consta do livro “Fruta de Palma” (crônicas nordestinas), cuja 1ª edição foi publicada na década de 1950 e a 2ª edição na década de 1990.


Para saber mais sobre o autor, clique no link: Oscar Silva





Comentários

  1. Oscar Silva foi um dos escritores pioneiros de Santana. Um talento nato..Um grande escritor!
    Parabéns, Xará!

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  2. Parabéns cronista João Neto Felix por esse resgate histórico dos escritos de Oscar Silva pelo mundo da mediunidade e suas miticidade. Em tempo transportou-me para a pré adolescência com a narrativa sobre o super herói Maciste. Lembrei de um filme assistido no cine Alvorada: Sansão Hércules Maciste e Ursus. Dá pra perceber o quão épico deva ser essa película
    Alguém aí que já jubilou lembra disso? Ass; Fabio Campos

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