Na cidade onde cresci, havia um casal que sempre será lembrado com carinho e admiração. Seu Esperidião e Dona Ritinha eram figuras ímpares, cujas vidas tocaram muitos corações, incluindo o meu. Moravam numa casinha modesta na rua Benedito Melo, próximo ao bairro São Pedro.
Naturais de Quebrangulo, vieram para Santana porque seus familiares não aprovaram o casamento e também em busca de trabalho para iniciar a nova vida. Seu Esperidião, quando aqui chegou exerceu a profissão de vendedor pracista de medicamentos e serviços básicos de primeiros socorros. Como andava muito pela cidade oferecendo seus serviços, aproximou-se de Bartolomeu Barros, de quem ganhou confiança e mantiveram amizade até o fim da vida, inclusive deles cuidavam como se fossem sua família.
As dificuldades financeiras dos recém-casados eram evidentes. Mesmo com os trabalhos, os recursos eram insuficientes para pagar o aluguel nas datas aprazadas, sendo repreendidos pelo proprietário. Bartolomeu Barros, sabedor dos constrangimentos, comprou o imóvel, cedendo-o ao casal por tempo indeterminado.
Seu Esperidião foi perdendo a visão paulatinamente até a cegueira total. Apesar de sua deficiência, era um homem de espírito independente e carinhoso. Frequentemente usava óculos escuros. Vestia-se com elegância: calças de linho e camisas de mangas longas. Seus cabelos brancos eram bem cuidados e regularmente aparados. Nos fins de tarde, sentava-se à porta sentindo o burburinho das pessoas pra lá e prá cá e a brisa leve do vento macio e, no seu íntimo, sentia-se realizado e sem arrependimentos da vida que levava.
Ele tinha uma habilidade impressionante de cuidar dos seus gatos persas mestiços. Sempre que passava pela casa deles, era impossível não notar os gatos de pelagem elegante e olhos penetrantes que o seguiam como sombras fiéis. A maneira como ele se movia pela casa, com passos seguros e gestos precisos, mostrava a profunda conexão que tinha com seus pequenos amigos felinos. Seu Esperidião conseguia identificar cada um dos gatos pelo simples toque e som de seus miados.
Ao lado dele estava Dona Ritinha, uma mulher de coração generoso e mãos habilidosas. Quando aqui chegou exerceu o ofício de costureira, confeccionando e consertando roupas. Depois, como tinha experiência, assumiu profissionalmente a prestação de serviços práticos de primeiros socorros e aplicações de injeções, inclusive atendia a domicílio. Ela era conhecida por toda a vizinhança como um anjo disfarçado. Não havia quem procurasse sua ajuda e saísse de mãos vazias.
Dona Ritinha estava sempre pronta para oferecer um ombro amigo, um conselho sábio ou um cuidado minucioso. Seu sorriso acolhedor e olhar atento fazia com que todos se sentissem especiais e amparados. Regularmente vestida de branco, blusa e saia, com os cabelos brancos lisos, mantendo o tradicional corte chanel.
A vida do casal era uma verdadeira lição de amor e dedicação. Mesmo com as adversidades, encontravam alegria nas pequenas coisas e nas conexões que criavam com aqueles ao seu redor. Juntos, mostravam que a verdadeira força reside na união e no carinho mútuo. Não tiveram filhos.
Recordar esses momentos é como folhear um álbum de memórias preciosas, onde cada página revela a beleza de uma amizade sincera e a generosidade de um coração bondoso.
Nas minhas frequentes gripes e resfriados que sempre duraram mais que o normal, recorri algumas vezes à dona Ritinha para me aplicar injeções medicamentosas. Eu já tinha vinte e poucos anos. Naquele tempo as seringas eram de vidro e as agulhas pareciam mais grossas que as de hoje. Assustava!
Num dos eventos aconteceu algo curioso: Eu havia comprado um medicamento injetável semelhante ao que temos hoje de nome “eucaliptol”. Na hora da entrega do produto, recebi um outro com função analgésica e nem percebi. Bom, quando a dona Ritinha terminou de aplicar o remédio eu desmaiei. Ainda bem que eu estava em casa e ela por perto. Depois de recobrar os sentidos, fomos examinar a causa e descobrimos o erro na droga aplicada. Ainda bem que não houve nada de mais além do susto.
Com a chegada dos compromissos da vida adulta, perdi um pouco do contato com o casal que eu admirava. Após o falecimento de seu Esperidião, dona Ritinha morou muito tempo sozinha, cuidando do gato Ticoli. Seu Bartolomeu sugeriu que ela fosse morar com dona Alice, sua mãe, que morava próximo, porém ela declinou do convite.
Quando seu gato morreu, providenciou seu enterro numa caixa de papelão num jardim próximo. Com a chegada da velhice, dona Ritinha passou a desconhecer as pessoas, até não poder mais cuidar de si, nem sair de casa. Por fim, foi acolhida no Lar São Vicente de Paulo.
Aproveito o ensejo para registrar erro histórico na designação do nome do abrigo santanense como “São Vicente de Paula”. Na verdade, o santo que dá nome a instituição chama-se São Vicente de Paulo, considerado o pai dos pobres.
Nos documentos, constituições e livros, seu nome é grafado corretamente, ou seja, São Vicente de Paulo. A exceção fica por conta de algumas publicações religiosas que, por descuido, displicência ou desconhecimento insistem em mencionar Paula, confundindo com São Francisco de Paula. (1416-1507).
O abrigo São Vicente de Paulo foi construído em terras doadas pela paróquia de Senhora Santana durante o vicariato do padre Luiz Cirilo Silva, em 1955, sendo seus fundadores: O padre Cirilo, Jugurta Nepomuceno Agra e Domício Silva e Antônio Azevedo. A instituição, mesmo com as dificuldades, vai fazer setenta anos que zela e ampara idosos que buscam a segurança e o cuidado de longa duração.
Quais os motivos escondidos que abrem caminhos para que pessoas cheguem até nós, ou nós a eles? Depois, histórias se complementam no permanente jogo da vida, cada encontro trazendo consigo a promessa de aprendizagens mútuas. Às vezes, é o destino tecendo suas tramas invisíveis, outras vezes, são nossas escolhas que desenham essas conexões. Em cada ser que cruza nosso caminho reside um fragmento de nossa própria história a ser descoberta, e é nessa troca que nos tornamos versões mais completas de nós mesmos, moldados pelas experiências compartilhadas e pelas lições aprendidas.
Janeiro, 2025
Emocionante, João!! Tive vontade de ter conhecido o casal, seus gatos e tudo o mais. Você me transportou para esse tempo e lugar. Um grande abraço, meu amigo escritor!. Goretti Brandão
ResponderExcluirParabéns ao amigo e confrade João Neto Felix Mendes por mais esta significativa página da sua história de vida aqui escrita e belamente compartilhada. Ass. Fabio Campos
ResponderExcluirDentro de cada pessoa existe uma história, existem segredos, existem sentimentos. Por trás de cada atitude existe algo mais. Ninguém está aqui em vão, ninguém faz nada por fazer. Só é preciso o olhar aguçado de um cronista para contar mais uma história de amor ao próximo e a si mesmo.
ResponderExcluirAcertou na veia, João, a injeção certa!
Parabéns, João de Liô, pelo resgate da memória desse casal tão marcarte e prestativo como foi Dona Ritinha e Seu Esperidião..
ResponderExcluirLembro-me perfeitamente deles..
Perfeito João, lembro muito bem de ambos, inclusive a casa onde moravam foi papai que comprou e deu para que morassem. Todos lá de casa experimentaram aquela seringa. César é tralmatizado até hoje. Lembro que quando a mesma se referia a Esperidião, era com aquele amor que aflorava. Pelo fato de serem somente os dois, papai fazia questão de sempre incluí-los nas datas comemorativas e domingos de rega bofe. Parabéns por mais essa pérola. Chico
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