Na pacata rua da Floresta, nos arredores de Santana do Ipanema, vivia Dona Maria Catingueira, uma mulher conhecida não só por seu nome peculiar, mas principalmente por sua habilidade incomparável de adoçar a vida de todos ao seu redor. Dona Maria mantinha uma barraca simples, mas sempre repleta de doces, principalmente aqueles produzidos das raízes - batatas - do umbuzeiro, pães e bolachas, que se tornaram a alegria das crianças e o consolo dos adultos naquele aglomerado urbano que mais parecia um povoado.
Fernando Catingueira, herdou da sua mãe não apenas o espírito empreendedor, mas também um profundo senso de comunidade. Fernando era uma figura icônica na região, conhecido por transportar a água salobra do rio Ipanema nas ancoretas no lombo de seu fiel jumento. Em uma época em que água encanada era um luxo distante, Fernando e seu jumento eram os heróis silenciosos que garantiam que ninguém na cidade ficasse sem o líquido precioso.
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Enchimento das ancoretas nas cacimbas do rio Ipanema. Acervo do autor |
Aquela rua era o principal acesso a promissoras regiões rurais produtoras de grãos e pecuária e já possuía pavimentação de pedras pé-de-moleque. O calçamento das ruas era preparado com enxadas que consistia em encaixar pedra por pedra, uma ao lado da outra. O calçamento permitia o tráfego de carroças, carros de bois, cavalos, burros, mas também eram adequados para os pedestres, que assim não precisavam andar na terra e na lama quando chovia. O trabalho do calçamento era cuidadosamente bem feito de modo que as pedras ficassem razoavelmente alinhadas.
Algumas pessoas acreditam que o nome deste calçamento se origina da semelhança com o famoso doce de amendoim. Mas há quem argumente que a origem vem da forma como as pedras eram assentadas por moleques que iam apertando-as com os pés. Mas o fato é que este tipo de calçamento era muito utilizado nos principais logradouros.
Ali, durante anos, funcionou uma fabriqueta artesanal de cordas da fibra de agave que além de gerar emprego e renda, era pura diversão para a garotada que assistia ao espetáculo rústico do trabalho braçal com o auxílio de rodas e manivelas que torciam as fibras esticadas que aos poucos ganhavam a forma dos rolos de corda à venda nas principais lojas do comércio.
Décadas após décadas, Fernando Catingueira percorreu as estradas de terra e calçamentos de pedras pé-de-moleque, desafiando o sol e a chuva, garantindo que cada lar tivesse água fresca, cuidadosamente recolhida das cacimbas cavadas nas areias do leito seco do Rio Ipanema. Seu trabalho era mais do que uma simples tarefa, era um ato de dedicação que se entrelaçava com a própria alma do povo sertanejo.
Tudo mudou no final dos anos 1960, quando a água encanada do rio São Francisco finalmente chegou ao sertão. Fernando Catingueira e seu jumento puderam, enfim, descansar. Contudo, a cidade jamais esqueceu o sacrifício e a importância do trabalho daqueles homens simples. Em homenagem aos abnegados trabalhadores, Santana do Ipanema ergueu um monumento na entrada da cidade: Estátua de um jumento, ancoretas e seu tangedor, eternizando a memória daqueles que durante tantos anos levaram vida à cidade, simbolizados na figura do tangedor Candinho e seu jumento Mineiro, outro trabalhador famoso.
A estátua original foi construída na gestão do prefeito Adeildo Nepomuceno Marques(1918-1978), pelo escultor pão-de-açucarense João Lisboa (1900-1990), também conhecido como Joãozinho Retratista. Todo em cimento armado, era composto de jumento, cangalhas, ancoretas, arreios e o tangedor.
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Monumento original ao Jumento e Tangedor. Acervo do autor. |
Foi instalado na Praça das Coordenadas, no início da avenida Dr. Arsênio Moreira, construída pelo prefeito Hélio Cabral de Vasconcelos (1956-1960), que passou a se chamar “Praça do Jumento” na gestão do prefeito Adeildo Nepomuceno Marques (1966-1970). Vândalos destruíram o tangedor nos anos 1980.
Chegou a ser restaurado no mesmo local, contudo na mesma década, a praça foi totalmente demolida por exigência do DNER, atual DNIT, por representar perigo ao fluxo rodoviário da BR 316 que corta a cidade.
Após a demolição da praça o conjunto de esculturas foi removido para o pátio externo da estação rodoviária, porém durou pouco tempo sob protestos da população de que o local era inadequado.
O monumento foi recolocado no início do canteiro central da avenida Dr. Otávio Cabral, nome de trecho urbano da BR 316, permanecendo até os dias atuais.
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Monumento atual. Foto: Fernando Fotografias |
E assim, as histórias de Dona Maria e Fernando Catingueira, continuam a ser contadas, lembrando-nos de uma época em que a simplicidade e a dedicação de famílias e pessoas faziam toda a diferença para uma comunidade inteira.
Tempos depois, o santanense Remi Bastos, poeta sensível e conhecedor dos sofrimentos dos sertanejos, compôs uma música em homenagem aos incansáveis trabalhadores anônimos de transporte d'água com os seus jumentos. A canção foi o samba-enredo da Escola de Samba Juventude no Ritmo que se apresentou no carnaval santanense nos anos 1970.
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Escola de Samba Juventude no Ritmo, fundada em 10.01.1967 Acervo: Tamanquinho |
Sertão Sofredor
“Recordo, aquelas madrugadas,
Quando pelas ruas passava,
Ploc ploc a caminhar,
Pisando velhos caminhos
Ia o pobre jumentinho
Mais um dia triste enfrentar.
Descendo as ladeiras da cidade
Era esse o seu dilema
Todo dia sem parar.
Nas cacimbas do Ipanema
Esperava horas inteiras
Até a água chegar…
Mais um dia o seu Dotô
Olhou pra nós,
Chorou, chorou,
Botou água em Santana
Para acabar com a fama
de um sertão sofredor…”
Ouça a canção, interpretação Waldo Santana
Fonte de Referência:
Edmundo Araújo Melo (1934-2024), depoimento em 2022 por ocasião das pesquisas sobre a Igrejinha das Tocaias.
Janeiro, 2025
Boa tarde Xará!
ResponderExcluirDas boas lembranças que te tenho do meu saudoso pai, já relatados no livro Igreja das Tocais, como ele viveu, à época dos ataques de Lampião, na Rua da Floresta, estão as história que faziam referência a D Maria Cantingueira, vendedora de doces e guloseimas, que adoçavam as vidas dos sertanejo que ali habitavam.
João Neto Oliveira Melo
Parabéns, João de Liô!
ResponderExcluirPor nos presentear com esses fatos e histórias de vidas , mas que fazem parte de passado recente :a praça das coordenadas, a inauguração da estátua do jumento, o calçamento delicado ou pé de moleque, os respectivos prefeitos da época , Maria Catingueira e José.
Valeu,Xará!!