O último adeus ao som das almas aladas

 


O silêncio fúnebre era reiteradamente interrompido pela sinfonia maviosa dos pássaros engaiolados que meu pai manteve e cuidou por longos anos: canário-da-terra, canário-belga, galo-de-campina, rolinha-fogo-apagou e o papa-capim.

Foto: Redes Sociais
Naquela manhã lúgubre, o céu chorava em tons de cinza, como se refletisse a dor que a todos envolvia e silenciava. A casa antiga, testemunha de tantas histórias e memórias, acolhia os amigos e familiares que vieram prestar o último adeus aquele homem singular. Os pássaros engaiolados, companheiros inseparáveis dele, observavam em silêncio e trinavam sem entender o que se passava, esperando o momento em que suas melodias seriam permitidas.

Enquanto as pessoas chegavam, abraços e palavras de consolo se mesclavam com suspiros e lágrimas contidas. Aquele sertanejo cuja vida sempre foi exemplo de superação, partiu, deixando um vazio que jamais será preenchido. Ao som do tic-tac do relógio na parede, a cerimônia teve início.

O padre Delorizano, seu primo, com voz serena e pausada, iniciou suas palavras de conforto e despedida. Ele falou das virtudes de meu pai, dos ensinamentos que ele deixou e do amor incondicional que sempre dedicou à família, não obstante suas limitações. As palavras ecoavam pela sala, atingindo cada coração presente. Era um tributo singelo e honesto, digno de um homem que viveu de forma simples, porém profunda, superando os desafios que a vida lhe impôs. A cada pausa da voz do celebrante, o coro dos pássaros no pequeno quintal se destacava e complementava os cânticos litúrgicos que eu e alguns amigos fizemos questão de tocar e cantar, especialmente para a ocasião.

A música dos pássaros não só trouxe consolo, mas também uma sensação de continuidade. Enquanto suas melodias ecoavam, cada nota lembrava-nos de que, embora ele tivesse partido, sua essência permaneceria viva em cada canto, em cada memória.

O sol, que até então se escondia atrás das nuvens, começou a espreitar timidamente, banhando a sala com uma luz suave e dourada. Era como se o próprio céu tivesse decidido homenagear aquele momento, trazendo uma paz silenciosa ao ambiente lutuoso.

E assim, ao som dos pássaros e sob a bênção do sol, dissemos adeus. Não um adeus definitivo, mas um até logo. Porque, em nossos corações e nas melodias aladas, ele sempre estará presente.

Após várias crises cardíacas, Liô havia sido internado mais uma vez. No dia anterior, sua recuperação estava demorando mais que o habitual e eu, impaciente e agoniado, saí em busca de notícias. No hospital doutor Arsênio Moreira, aleatoriamente e discretamente, abri devagar a porta de uma sala sem que ninguém me visse. A cena que presenciei foi cruel: o médico que o atendia estava sobre o corpo, executando procedimentos de reanimação cardiopulmonar. Assombrado e impactado só havia algo a fazer: Pensei rápido! A porta que estava entreaberta, fechei-a e retornei ao meu lugar, silenciosamente.

Não confessei nada do que assisti a ninguém porque não era conveniente valer-se da minha posição familiar para antecipar conclusão ou pressupor sobre o que eu havia presenciado e não entendia. Aliás, eu poderia estar equivocado. Quisera! Aflito, recolhi-me aos pensamentos e dúvidas. Em pouco tempo, o médico compareceu à sala de espera para comunicar que ele não havia resistido e infelizmente tinha falecido. O que senti foi solitariamente lancinante e sem chão! 

Quando finalizou a celebração e o cortejo partiu em direção ao cemitério Santa Sofia, eu ainda tinha uma missão a cumprir. Reunimos alguns amigos e seguimos a pé em direção ao campo santo cantando canções de vida e morte, acompanhadas ao som do meu violão.

Quando voltamos da cerimônia eu e minha mãe tomamos uma decisão: Em meio a emoção que nos dominava, abrimos as gaiolas. Os pássaros, hesitantes a princípio, logo ganharam coragem e começaram a cantar. Suas melodias preencheram o ar, misturando-se com a emoção daquele instante. Era como se eles soubessem que aqueles eram seus tributos ao homem que os amou e cuidou durante toda sua vida.

Aos poucos, um após o outro, ganharam os céus. Alçaram voo rumo à liberdade desbravando horizontes desconhecidos e deixando para trás as gaiolas limitantes. Levantar voo rumo à liberdade, representa coragem, transformação e a crença de que, ao desafiar os limites impostos, pode-se alcançar um novo patamar de realização. É o movimento incessante da vida em direção ao autoconhecimento e à plenitude.

No final daquele dia tão doloroso e intenso, precisávamos de silêncio. Trancamos o portão e fechamos as janelas. Desligamos as luzes e nos recolhemos em nós mesmos porque é preciso que um dia se vá para que outro dia amanheça.


Janeiro, 2025

Comentários

  1. Amigo João! Seu Liô. Cresci pertinho dele e da Família. Fomos vizinhos. Lição de superação. Dor só sabe quem sente. Experiência incrível essa que compartilhou. Nossos Pais, nossos heróis. Saudades!

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  2. Seu Liô, homem íntegro, observei muitas vezes ele jogando dominó no bar de Erasmo, abraço

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  3. Qualquer comentário hoje, por mais simples ou mais complexo, não seria qualquer complemento ao texto, recheado de sentimento que só quem vivenciou sabe sua dimensão exata. Para nós , leitores, fica apenas a admiração pelo texto tão bem poeticamente transcrito, de um momento de nó na garganta.

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  4. Hayton Rocha13/01/2025, 10:43

    Abrir gaiolas para reverenciar a partida de seu pai não poderia ter sido um gesto mais emblemático de liberdade e paz de espírito. Os pássaros, sensibilizados, perceberam a extensão de tudo, e cuidaram de fazer a parte deles. Parabéns, inclusive pelo texto.

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  5. Parabéns!
    O seu texto reproduz realidade, faz homenagem e, a atitude de abrir as gaiolas talvez, no inconsciente, com o voo dos pássaros, estivesse reproduzindo o voo do Espírito do seu pai, já que o corpo estava sendo sepultado.
    Um abraço
    João Neto Oliveira

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  6. Belíssimo texto, meu amigo João. E que comovente homenagem. Parabéns por tão lindo discorrer de um cenário triste, de despedida, que você com tanto sentimento e dignidade escreveu.
    Goretti Brandão

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