Assombrações da velha Santana do Ipanema por Oscar Silva

 





Como todas as crianças sertanejas, fui menino que não conheceu gibis nem fitas de cowboy em que me entretivesse. Em Santana houve, durante pequeno espaço de tempo, um cineminha mudo que funcionou no prédio da empresa elétrica e logo desapareceu, deixando-nos apenas a entusiástica lembrança de Massiste, o homem que parava automóveis, arrancava postes de ferro e derrubava casas somente com a força de seus músculos. O nosso entretenimento predileto, além das brincadeiras de criança, consistia no ouvir das célebres histórias de Trancoso.


Minha tia era uma cabeça de inesgotável repertório. Entre as suas histórias, que eu e meus irmãos ouvíamos de olhos arregalados, havia simples fábulas inocentes de galinhas, pintos, raposas e macacos sabidos; havia outras de aventuras amorosas ou de reinos encantados; mas também não faltavam as horripilantes histórias de fantasmas. Estas, nós as ouvíamos quase tremendo, mas gostávamos delas. Talvez menos impossível achássemos o aparecimento de uma alma do outro mundo que a existência de um reino encantado.

Titia, conte aquela do "Eu caio!"

E lá vinha a história:

Em certo lugar havia uma casa abandonada pelos donos. Cercada de mato e povoada de morcegos, ninguém se atrevia a passar uma noite naquela casa. Um retirante, porém, chegou ao sítio e, não tendo onde repousar, entrou na casa, que se achava de portas abertas, e ali ficou. Não adiantaram as advertências de certas pessoas sabedoras do terrível mal-assombrado que se via no prédio. O homem não tinha medo de nada e ficou mesmo. Meia-noite - hora de aparecerem almas do outro mundo. O homem estava cochila-não-cochila, quando ouviu uma voz, vinda do telhado:

Eu caio? Abrindo os olhos, o homem não viu ninguém, mas respondeu:

Pode cair! E uma perna de gente surgiu pendurada no telhado. A mesma pergunta repetida e sempre a mesma resposta.

E assim foram surgindo pernas, tronco, braço até que um negro pulou no meio da casa. O homem, que já esperava por ele, laçou-o logo com um cordão de São Francisco. O recém-chegado não era outro senão o Demônio e começou a dar pulos de todos os tamanhos e a pedir ao homem que o soltasse. Este, porém, só o atendeu depois da confissão de existir ali botija enterrada por uma alma que jazia no Purgatório e candidata ao Inferno se ninguém desenterrasse o dinheiro. No dia seguinte a casa amanhecera calma e o hóspede dormia tranquilamente. Estava rico, graças à botija que o próprio Demo desenterrou para ele.

Histórias como esta - a da caveira que aceitou o convite para almoçar com um debochado, a de uma botija cheia de besouros e muitas outras - eram-nos contadas com minúcias que nos tiravam completamente a vontade de dormir durante a noite.

A respeito de coisas do outro mundo, minha avó não contava histórias, narrava fatos. Fatos conhecidos dela ou de pessoas amigas e portadoras de sua inteira confiança. Começava sempre pelos exorcismos do Padre Francisco Correia e a luta desse missionário para retirar demônios, inclusive o caso de uma moça de Pão de Açúcar que estava com "a sombra do Cão". Outros fatos de possessos iam sendo narrados com citações de local, ano, dia, hora e testemunha.

Quando julgávamos esgotada a lista, ela ainda surgia com a "sombra do cão" da moça de um sítio chamado Desumano. O Padre Capitulino havia ido até lá e feito um exorcismo em latim. O Cão não entendeu, e o reverendo fez o mesmo exorcismo em português. Ouvindo aquilo na língua de Camões, Satanás riu e parecia cantar o que mais tarde seria marchinha de carnaval:

Daqui não saio!

Daqui ninguém me tira!

Desanimado, o pai da moça resolveu apelar para o Juazeiro do Ceará. Foi até lá com a filha. O Padre Cícero retirou o demônio, mas proibiu a família de continuar residindo no Desumano.



Oscar Silva. Fruta de Palma.1990.








Comentários

  1. Ouvi por vezes esta história do eu caio contada pelo meu pai, Abílio Félix, que nos contava os variados generos literários, inclusive muitos cordéis dos quais guardo na memória.

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  2. As histórias de Trancoso foram companheiras das noitadas da meninida de diversas gerações contadas por pessoas mais velhas e próximas da família.
    Parabéns, Xará!!

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  3. Contei para meus filhos, eles adoraram e pediram para contar mais. A magia ainda sobrevive!

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  4. A Kath e o Robinho adoram essas histórias, como também contei muitas em sala de aula, sempre ouvia;
    -Prof. Robson, conta aquelas histórias!! Então com muitas firulas e enfeitáveis expressões, desenterrava histórias de minha infância.

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