Tempos passados quem trafegava na rodovia BR-316, no sentido Dois Riachos-Santana do Ipanema-Dois Riachos, testemunhava algo incomum.
O riachense José, pessoa com transtornos mentais, se incorporava de homem-carro, guiado por ele mesmo. Aquele era seu o território de brincar de gente grande. De veículo mesmo só tinha a direção improvisada de mangueira plástica, revestida de um tecido preto. Duas varetas de pau, amarradas no volante com sacolas plásticas rasgadas, complementavam os comandos do motorista; câmbio e o limpador de horizontes. O resto era a criatividade de uma mente obcecada que fazia dele um andarilho e maratonista obstinado.
Sua obsessão, impulsionada pela loucura era seu combustível e sua razão de viver. Diariamente, de pés descalços, com as duas mãos no volante guiava incansavelmente seu veículo imaginário, de sol a sol, solitariamente e com a experiência de anos de estrada. Sua educação era digna de exemplo: Rigorosamente na sua mão de trânsito, não incomodava ninguém, posicionando-se no acostamento para facilitar as ultrapassagens com segurança. Seu orgulho e realização era ouvir o buzinaço quando cruzava ou era acompanhado por automóveis em sinal de saudação.
Todo dia, infatigavelmente, associava-se ao sol inclemente na certeza de chegar antes do sol a pino lhe queimar os pés calejados que, não raro, sangrava, maltratados e rachados pela exaustão e esforço sobre-humano de marchar, correr e caminhar no asfalto negro, impiedoso e quente.
Rodou vários mundos nas voltas de sua direção estradeira atravessando horizontes e desertos. Acelerou os sonhos, rodopiou e deu cavalo de pau nas desilusões. Deslumbrou-se até estancar seu carro nas crises incontidas de alucinações para dar alívio à mente atribulada.
Certo dia, decidiu se arriscar, percorrendo novas estradas e, depois de vencer quilômetros a fio, indo e voltando por tantas horas a esmo com destino incerto, foi atropelado pela insanidade e insensatez de um homem raivoso e sem comiseração. Agonizou na sua mão, sem atrapalhar o trânsito, nem ninguém. À margem da vida e da via, o impacto jogou-o na valeta à mercê do tempo. Ninguém se compadeceu! Pelo contrário, ainda diziam:
- Era louco, não foi nada não!
Nos seus últimos suspiros e sussurros, de bom mesmo restou ouvir o cricrilar dos grilos numa moita escura da estrada deserta, enquanto aguardava o rabecão.
E agora José? Em protesto, o sol se recolheu mais cedo. O carro enguiçou e foi desprezado no monturo próximo à rodovia. Abandonado por aqueles que se diziam seus amigos, sentiu a desesperança e a sensação de quem está vendo a morte de perto, sem saber ao certo o que fazer.
A vista foi escurecendo. Queria gritar, mas não tinha forças. Queria gemer, mas emudeceu! Sentiu o cansaço e a dor dominar seu corpo inerte. Seu desejo era dormir e não mais acordar porque tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu. Porém, de repente, se sentiu leve e pareceu flutuar. Era um menino passarinho com vontade de voar!
E assim, nessa agonia, entre a vida e a morte, alçou voo levando a própria vida em suas mãos igual a um bicho errante que cumpriu o seu destino sem nada reclamar.
Setembro, 2024
Que narrativa poética, João. Maravilhosa, ainda que tratando de um fato com nuances tristes.
ResponderExcluirFernando, a gente nunca sabe, com certeza, qual será a opinião do leitor. Obrigado!
ExcluirQue emocionante e bela crônica sobre a vida de José do Carro,João de Liô!
ResponderExcluirParabéns,Xará!
Valeu Xará, grato!!!
ExcluirMuito bom. De um lirismo raro. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado Hayton!! Valeu!
ExcluirJosé Neto, terminei de receber da minha Nobre amiga Leonia. Terminei de ler. Quero te dar com muito prazer. Meus parabéns, uma bela obra. Quando abrir a nossa tão ama Osacre. Foi feito uma visita a família de José carro. O pai dele me visitou e falou: minha irmã, vou fazer este plano. Tenho um filho, que imita um carro, vejo pouco ! Sei que poderei precisar. Eu acredito no que a senhora Luiza está fazendo. Minhas condições são pouca! E não sei a hora que praciso principalmente para José. É cuidamos com muito amor do homem carro. Obrigada por poder participar deste momento. Meu abraco!
ResponderExcluirLuiza da Osacre !
ResponderExcluirLuíza, é interessante como nossas vidas estão entrelaçadas de alguma forma, né? Obrigado por compartilhar conosco sua experiência.
ExcluirLembro dele João, excelente artigo, suas publicações são primorosas. Mais uma vez parabéns!! Chico Barros
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