Fragmentos do Jornal Cancela Sertaneja, parte II





Pau para toda obra

Mais um ano sem lavoura, aumentando assim, o número de famintos e peregrinos. É triste a vida do nordestino, plantar e não colher. Nada de chuva. Pobre coitado, sem dinheiro para sustentar a família, o que fazer? O desespero aumenta a cada dia que passa. Numerosas famílias tentam sobreviver de uma forma ou de outra.

Quando a situação realmente torna-se crítica, é que o governo se volta para os problemas dos sertanejos. Não com objetivo de saná-los, apenas diminuí-los com remédios paliativos, tipo "Frentes de Emergências". Nessas Frentes cada trabalhador ganha aproximadamente Cr$ 16.000,00 (R$ 5,82). Ressalvamos o governo, mínimo, mas ainda aceitável, porém, temos de ser realistas e admitirmos que trata-se de um salário ridículo, irrisório para que com ele, o pobre homem nordestino possa alimentar a si e a sua família.

Analisando a contribuição do nordestino para o progresso da nação diríamos que o sertanejo, mesmo explorado foi quem com disposição, transformou São Paulo e Rio de Janeiro nas grandes metrópoles atuais. Como se não bastasse, também muito ajudou na construção de Brasília e tantas outras obras nacionais, no entanto fomos e somos tratados como verdadeiros escravos.

Jamais, estados de outras regiões, uniram-se para combater as consequências trazidas pelas secas. Soluções existem, porém, o governo, que tem o dever e a obrigação, pouco se volta para o nosso sofrimento.

Quando o Sul começou a sofrer as inundações, a nossa pobre e desatrelada região uniu-se para enviar donativos. Como se vê, a bondade é um forte da nossa gente.

Um sério entrave para a questão, é o fato das outras regiões terem se acostumado ao problema da seca no Nordeste e aceitado como um fato natural. O estudante sabe como ninguém que não devemos ser determinista, temos é que questionar, estudar e buscar soluções. Dan não aceitarmos essa inércia. dos governantes e do resto da população do país, ante aos problemas da nossa região, pois caso eles se dispusessem a nos ajudar, estariam não só contribuindo para solucionar os problemas de nossa gente pobre e sofrida, que nunca se negou só trabalho e só companheirismo quando solicitado, mas a desenvolver uma região que faz parte da Federação e assim, consequentemente, estariam ajudando a desenvolver a nação.

José Elgídio da Silva, 1983.




E o cágado?


Certa vez, em visita à "Veneza Brasileira", caí na besteira de dizer a alguém que o cágado era bom.

- E é? Perguntou-me Apolodoro.
- E se come cágado na sua terra?
- Claro que sim, respondi entusiasmado e até com um pouco de orgulho.
- Santana do Ipanema já nem é mais a "Terra do Feijão", é a "Capital do Cágado".
- Oxente! E como é que se mata?
- Matando.
- Então, quando eu for a Santana, prepare um cágado que eu quero ver se o bicho é bom mesmo.
- Eu não estou dizendo, rapaz? Até o Governador, secretários de estado, os grandolas, enfim, quando vão a Santana, já sabem, a cagadada tá feita.

Esqueci-me. Ora, dois anos depois chegou o Apolodoro, do Recife, e o cumprimento foi esse:

- E o cágado?
- O cágado?! tremi nas bases. Mesmo assim gaguejei que o cágado estava de pé.
- Então providencie esse peste que hoje quero comer cágado no coco. Quem promete, deve.


Botei as mãos na cabeça. Diabos! Meu hóspede tinha boa memória. O pior é que não crio o danado do jaboti. Ninguém vende cágado nessa época do ano. Semana Santa é que o "velho vagaroso" sai das malocas para chupar ou comer imbu, sei lá; e os veteranos caçadores do "blindado" não lhes dão trégua. Mas meu hóspede nem quer saber disso. Manda me virar, como se eu fosse um astuto mateiro na caça feroz ao esplêndido "tira-gosto".

Finalmente, depois de andar mais de que as ovelhas de Zé Urbano, termino adquirindo dois famosos "vivedores". Pago caro. Mando-os para um abatedouro da cidade. Os sabidinhos mijam dentro do veículo e fazem mais alguma coisa relativa ao nome do seu prato. Fedentina desgraçada! Nessas alturas, já estou sem paciência. Os ditos só estarão prontos à tarde, diz a moça. Meu hóspede enche-me a cabeça:

- E o cágado?

Estou para explodir. Meu Deus, porque fui prometer ao indivíduo esse famigerado animal? Mas é isso mesmo, hóspede é hóspede, digo para mim mesmo, sem muita certeza no que estou dizendo. À tarde vou buscar os bichos Levo-os para quem de direito no tratamento finíssimo de jabutis e jabotas. Falta coco. Lá volto atrás do produto. Ora coco! Já não existe mais coco na feira. Corro a uma especializada, em busca do produto industrializado. Lá vai mais tanto! Levo o material para a tratadeira. Ela me diz que, pelo adiantado da hora, o prato só estará pronto no outro dia. A coitada tem pena do coitadinho (eu). Olho para Apolodoro com cara de choro e ele não tem dó. Repete, dó. Repete, distraído:

- E o cágado?

Conto até dez. Converso com a mulher, tentando convencê-la a entregar-me logo os MALDITOS CÁGADOS.

São onze horas da noite, quando, já exausto e profundamente aborrecido, vou chegando, finalmente, com a cagadada, quando meu hóspede me avista de longe, panela na mão, cara de poucos amigos, e grita de lá do meio do povo:

- E o cágado?

Não posso responder. Não apresento condições. Apolodoro destampa a panela e arma no cheiro. Ataca os quelônios com toda a fome acumulada de dois anos atrás; e só para minutos depois quando, batendo na barriga, como quem está satisfeito, diz:

- Ô bicho bom da gota serena! Quando é que tem outro desse?

Fico arrepiado. Digo que a espécie está em extinção; que o governo devia tomar as providências; que cágado de mais enjoa e coisa e tal. O hóspede parece dar-se por satisfeito e eu tomo grande alívio no momento.

Três dias após o episódio, o fulano está de volta ao Recife. Depois de elogiar bastante a Terra de Santa Ana, toma seu lugar no ônibus e diz que pari o ano estará de volta. Digo que pode vir, que as portas estarão abertas. Ele agradece e tenho a impressão falsa de que vai esquecido de alguma coisa.

O ônibus dá partida e eu solto um "ufa!", de alívio. Porém, qual não é a minha surpresa quando, vinte metros adiante, vejo o meu irritante hóspede por a cabeça fora da janelinha, a gritar preocupadíssimo.

- E o cágado? E o cágado?

Paciência, só Deus sabe quantos estalos de bananas partiram em direção do Apolodoro.


Clerisvaldo Braga das Chagas, 1983









Fonte de referência: Ano I, exemplar nº 2, publicado no segundo semestre de 1983.













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