Aos meus avós

 

Caitlin Connolly. Nós com eles e eles conosco (2016), óleo sobre painel. Foto Redes Sociais.



A nossa história começa muito antes de nós, ainda que a gente não tenha consciência de todo o entrelaçamento que nos precede. Nossa estirpe foi bordada ao custo de muito suor e sacrifício de várias gerações das quais sequer sabemos da sua existência. Caminhos que se encontraram ao acaso e teceram uma complexa rede de relacionamentos até a nossa chegada. Estar aqui é a prova daqueles que sonharam o futuro.

Infelizmente, pelo mero acaso da vida, meu primeiro encontro com a única avó materna viva já foi também uma despedida, num tempo em que eu ainda não tinha consciência de quem era eu, porém tudo ficou guardado e empoeirado nas prateleiras do tempo. Quando retornamos a Propriá, Sergipe, alguns anos depois, foi para recolher os restos mortais para sepultar no túmulo da família no sertão alagoano. Tudo faz parte dos imprecisos caminhos da vida.

Resta lamentar a falta da convivência com os meus avós ou bisavós, sejam maternos ou paternos. Sinceramente, não há ressentimento na exceção, apenas falta, muita falta. Afetos não vividos que somente avós podem dar me deixaram páginas em branco, contendo apenas rabiscos de mãos trêmulas, indecifráveis. Ferida incurável na alma que volta e meia reabre e sangra até parar por si mesma e, quando menos se espera, reinicia, independente do meu querer. Irremediável incompletude afetiva.

O desafio é dominar as carências inconscientes vislumbrando o que poderia ter sido e não foi; cheiros de guardados não sentidos; as tapiocas que ficaram por fazer e os pores do sol nunca vistos e, na varanda, remoçando nas conversas de fim de tarde. Entretanto, tudo passa! Tanto as coisas boas, quanto as ruins! Busco, numa saudade contida, os traços dos seus rostos cansados da lida e as linhas tortuosas de mãos calejadas que se encontram perdidas entre as minhas. Afinal, se aqui estou, eles fazem parte do que sou agora. Isso, por si só, já é motivo de gratidão. Jamais serão esquecidos. Abraçamo-nos em pensamento!

O que somos contém muito daqueles que viveram muito tempo antes de nós, mesmo que a gente não tenha plena consciência dessa verdade ou até ignore. Seguem em nós fragmentos de suas lutas, decepções, fracassos, recomeços, vitórias e sonhos. Então, somos um resumo de todas as gerações que nos precederam. Somos mensageiros do legado hereditário presente na teia simbólica crescente e viva que nos conecta ao passado e ao futuro.

A ancestralidade contida em nós valida nossa existência ao nos lembrar que somos parte de uma continuidade, uma corrente ininterrupta de vida e história. Cada um de nós é um elo na corrente, carregando consigo as histórias e os sonhos de nossos antepassados enquanto construímos o futuro.

No dia 26 de Julho, dia mundial dos avós, celebraremos a festa dos padroeiros Sant'Ana e São Joaquim, pais de Maria, avós de Jesus Cristo. A data foi instituída pelo Papa Paulo VI, no século XX.


Caminhos do coração (Gonzaguinha)


(...) E aprendi que se depende sempre
De tanta, muita, diferente gente
Toda pessoa sempre é as marcas
Das lições diárias de outras tantas pessoas

E é tão bonito quando a gente entende
Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá
E é tão bonito quando a gente sente
Que nunca está sozinho por mais que pense estar

É tão bonito quando a gente pisa firme
Nessas linhas que estão nas palmas de nossas mãos
É tão bonito quando a gente vai à vida
Nos caminhos onde bate, bem mais forte o coração (...)



Julho, 2024

Comentários

  1. É verdadeira a narrativa, João de Liô!!
    Um belo texto sobre a falta de convivência com nossos ancestrais.
    Parabéns, Xará!!

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    1. Essa incompletude diz respeito a cada um de nós e seus vazios existenciais.

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  2. Que narrativa sensacional, João Neto. Deslumbrante

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  3. Fernando Chagas08/07/2024, 10:20

    Excelente resgate, em forma de crônica, de um tempo que para muitos não foi vivenciado, a companhia dos avós. Bisavós aí é que a probabilidade quase chega a zero. Eu mesmo muitas vezes já fiquei a me questionar porque não pedi a minha mãe para contar histórias dos avós dela. Hoje, com tantas possibilidades de registros, as gerações futuras terão um manancial fabuloso para conhecer.

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  4. Hayton Rocha08/07/2024, 11:18

    Você escreve bem até quando narra a saga de outros sertanejos. Mas quando conta a sua, mexendo nas profundezas do coração, entrega textos primorosos, fora da curva. Parabéns pela pérola de hoje.

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