Valdemar de Souza Lima personifica inteiramente o intelectual autodidata que, a exemplo de Graciliano Ramos, seu biografado, engrandeceu o cenário cultural brasileiro.
Sua trajetória começou às margens do Ipanema, emoldurada pela matriz de Santa Ana, onde formou uma invejável bagagem cognitiva, não apenas devorando a literatura que lhe caísse às mãos, mas repartindo seu conhecimento enciclopédico com vários companheiros de geração.
Ele se converteu no primeiro intelectual orgânico de Santana do Ipanema, desempenhando, no sentido gramsciano, um papel de liderança espontânea e de perseverança coletiva para constituir uma vanguarda regional que se ampliou do jornalismo para a literatura, a história e a sociologia, projetando-se até mesmo na arte dramática.
O ambiente intelectual por ele guiado em nossa cidade era reflexo daquele regionalismo tradicionalista que Gilberto Freyre disseminou em todo o Nordeste, cujos vestígios foram encontrados pelo historiador Tadeu Rocha em todo o Estado de Alagoas. Seu canal de difusão eram as sociedades culturais como "o Grêmio Literário Guimarães Passos, de Maceió, ou a Agremiação Literária, Dramática e Beneficente de Santana do Ipanema", onde os poetas se reuniam para declamar sonetos, aclamados pelos seus admiradores.
E a cena se repetia, mudando só os personagens, que eram mais idosos, nas sociedades literárias de Penedo, Viçosa, Palmeira dos Índios ou Mata Grande. Lá em Santana do Ipanema o pessoal da Agremiação Literária, Dramática e Beneficente não era menos ativo: o poeta Valdemar de Souza Lima inspirava-se nos passeios noturnos pelas estradas desertas; o 'causeur' Atanagildo Brandão deliciava-se no 'Rocambole' e encantava os seus ouvintes com a 'História do Imperador Carlos Magno e os 12 Pares de França'; Fernando Nepomuceno lia Alan Kardec, citava Flamarion e representava de malandro no palco da agremiação, no sobrado grande do meio da rua; e o professor Zezinho Limeira, depois das suas lições de Gramática e Aritmética, redigia cartas de amor, no jornalzinho municipal, dirigidas a uma desconhecida Mary (Tadeu Rocha, p. 19-20).
Trata-se de movimento literário que libertou a juventude daquela “ordem gramatical" imperante em todo país e subordinando a prosa ao gongorismo lusitano que adornava a literatura e complicava a oratória.
Pelo menos em Santana, o povo continuava vivendo um tempo ultrapassado. Os homens ‘sabidos’, isto é, lidos ou viajados, discutiam nas esquinas ventiladas, nas farmácias e nas barbearias, as duras regras gramaticais, mesmo quando o bando de Lampião ameaçava a cidade. [...] Lá no Instituto São Tomás de Aquino, o professor Pedro Bulhões não deixava os alunos transgredirem os preceitos da ‘Gramática Portuguesa’ elementar, de João Ribeiro, o Juiz de Direito da Comarca, bacharel Manoel Xavier Accioly, não admitia cacófatos [...]. Diretor e professor estavam absolutamente convencidos de que o futuro da pátria dependia da ordem gramatical. [...] A essa ordem gramatical é que foi perturbar o primeiro movimento regionalista do Nordeste (Tadeu Rocha, p. 38-40).
Pois bem, o líder dessa corrente renovadora é hoje inteiramente desconhecido das novas gerações e até mesmo excluído da memória histórica local. Vale a pena resgatar seu papel decisivo para a constituição da cultura santanense. Trata-se de fazer justiça a um santanense adotivo, reconhecendo seu pioneirismo e restaurando seu valor histórico.
História de vida
Nascido em Salomé, hoje São Sebastião, Valdemar de Souza Lima peregrinou com os pais por quatro outras localidades, até fixar-se em Santana do Ipanema. Ali ajudou o pai José Virgínio de Souza Lima nas atividades agropecuárias e foi alfabetizado pela mãe Josefa Leite de Souza Lima, professora pública estadual. Com a morte do pai em 1914, trabalhou na lavoura com os outros irmãos, mas a seca contumaz e a flutuação do mercado de cereais o empurrou para a cidade. Para sobreviver com a família, torna-se aprendiz de sapateiro e de balconista numa panificadora.
Em compensação, teve a sorte de realizar os estudos primários no curso noturno mantido gratuitamente pelo professor Domingos Lima com quem também aprendeu noções básicas de contabilidade. Seu mestre, ocupando a função de guarda-livros da viúva Manuel Rodrigues da Rocha o recomenda, em 1920, para trabalhar como empregado daquela que era considerada a mais importante casa comercial da região. Passou, então, a desempenhar funções na varejo de tecidos e de miudezas, bem como atacado, beneficiando e negociando algodão.
Esse aprendizado o estimula a estabelecer-se por conta própria, em 1930. Sem prever a crise que dizimaria a economia sertaneja, naquela conjuntura, inviabilizando todos os negócios, ele foi obrigado a pedir concordata, saldando os débitos com os fornecedores e credores.
Desmotivado, abandona o comércio varejista, em 1933, mudando-se para Maceió, onde retoma o papel de subalterno. Seu mestre e amigo Domingos Lima o indica para emprego na Tércio Wanderley & Cia, empresa comandada por um santanense que triunfara como industrial liderando o ramo açucareiro.
Mas, sentindo nostalgia da vida sertaneja, ali permanece pouco tempo. Por influência da família da mulher, Luiza Cavalcanti Lima, ingressa em 1934 no serviço público como secretário-tesoureiro da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios. Acumula também o posto de inspetor estadual das escolas primárias naquele município, convidado pelo então diretor da instrução pública de Alagoas, o antigo prefeito Graciliano Ramos.
A tão merecida estabilidade profissional chegaria ao fim daquele ano. Participando de concurso público para Tabelião, conquista, por mérito, a gestão do Cartório de 1º. Ofício de Palmeira dos Índios, onde permaneceu durante 33 anos, sem usufruir férias, licenças ou afastamentos.
Ao se aposentar, em 1969, decidiu transferir-se para Brasília, onde permaneceu até 1986, ano da sua morte. O meio ambiente do Planalto Central o fascinou pela temperatura mediana e pela ausência de poluição. Na vida sossegada da capital federal, teve oportunidade de concluir as duas obras iniciadas no sertão alagoano: Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios (1971) e O Cangaceiro Lampião e o IV Mandamento (1979).
A seiva para nutrir essa produção literária, destacando-o no panorama intelectual brasileiro, ele reabastecia, todos os anos, deixando Brasília na temporada do verão. Em busca da paisagem sertaneja, retomava o contato com parentes, amigos e conterrâneos.
Metamorfose cultural
Quem registrou evidências importantes sobre a identidade santanense de Valdemar Lima foi o escritor Oscar Silva em seu livro Fruta de Palma (Maceió: Edições Caeté, 1953). Trata-se de reconhecimento procedente de outro tipo de intelectual, ou seja, de um intelectual contra-hegemônico, mais identificado com as camadas subalternas da sociedade local.
Em que circunstância ocorreu essa metamorfose e como se fortaleceram seus laços afetivos com a cidade que o acolheu ainda na tenra idade?
Valdemar de Souza Lima não era filho de Sant'Ana. Havia chegado ali bem pequeno e em companhia dos pais. Sua mãe, a Professora D. Zefinha, tinha sido designada para lecionar às meninas da cidade, e Valdemar criara-se ali, bebendo água do Ipanema e comendo cuscuz com feijão e carne-de-sol assada. Isso fizera-o esquecer aos poucos a terra natal e tornar-se portador de um entranhado amor a cousas de Sant'Ana, a ponto de defender os problemas da terra com mais denodo do que muitos dos chamados verdadeiros santanenses (Oscar Silva, p. 143-144).
Seu perfil comportamental também aparece com nitidez no testemunho do escritor, que proclama o reconhecimento da cidadania adotiva.
Já pela esmerada educação doméstica, já pelo próprio instinto de fugir do mal, Valdemar foi um espelho que os pais santanenses apresentavam aos filhos para modelo de seu comportamento. Quase puritano (qualidade que não invejamos a ninguém), aquele menino tornara-se rapaz, inimigo de brincadeira, avesso a carnavais, apegando-se somente aos livros e ao trabalho. [...] Inclinado para a literatura [...] Sua poesia era seca e esturricada, como que burilada com a areia grossa do Ipanema (Oscar Silva, p. 144)
Além de poeta telúrico, incentivou as artes na cidade. Desde o início do século XX, Santana tinha "como as outras cidades sertanejas” [...] "uma vida intelectual semelhante às de suas congêneres da Zona da Mata", inclusive a música e "não raro um teatro de amadores".
A primeira instituição desse tipo foi a Sociedade Musical Dramática Santanense, fundada por Manuel Vieira de Queiroz, cujas atividades foram retomadas nos anos 1920 pela "Agremiação Literária Dramática Beneficente", fundada por Valdemar Lima e outros líderes "progressistas da terra".
Embora demonstrasse austeridade moral, sua verve dramática só transparecia no palco, quando representava papéis com os quais nem se identificava.
Pois bem, esse poeta de moral inatacável, esse homem que só amou para se casar, esse rapaz que tinha horror ao cheiro de álcool, esse Valdemar representou no teatro o mais perfeito papel de bêbado que já vimos. [...] desempenhava isso com uma perfeição admirável: a fala, os gestos, as atitudes eram de ébrio consumado. [...] Aquilo era, sem dúvida, a arte em toda a sua pureza (Oscar Silva, p. 146).
Pioneirismo
Contudo, a maior realização de Valdemar de Souza Lima no âmbito da história local foi a de pioneiro do jornalismo santanense, o que mereceu destaque na contracapa do seu livro sobre Graciliano Ramos, cuja primeira edição tem o selo da Editora Marco, de Brasília (1971).
Interessado que foi sempre na evolução cultural do seu Estado, fundou com outros colegas o jornal O Panema, que circulou em Santana do Ipanema.
Oscar Silva anotou algumas referências históricas que reiteram a existência desse jornal pioneiro, do qual existem exemplares no acervo do Museu Histórico Municipal.
Resgatando fatos relacionados com as ameaças de invasão do território santanense pelo bando de Lampião, ele apresenta como fonte uma matéria publicada nesse jornal.
Dias depois circulava O Panema e em suas colunas dava a notícia... (Oscar Silva, p. 78).
Novamente Oscar Silva cita o jornal santanense com fonte de um acontecimento que emocionou a comunidade local, ou seja, o assassinato de um trabalhador rural pelo cigano Damião. Na verdade, ele contesta a versão do jornal, sugerindo que a matéria errou ao identificar o assassino.
Publicando o fato, O Panema dava como sendo Sinhô Pereira o nome do cigano. [...] Posso também estar enganado. Só o arquivo de processos criminais poderia esclarecer a verdade (Oscar Silva, p. 109).
Como se trata de fato datado de 1929, deduz-se que a vida do primeiro jornal santanense foi efêmera, circulando de 1928 a 1929. Certamente o periódico foi tragado pela voragem da crise econômica decorrente da quebra da bolsa de Nova Iorque, debilitando a economia mundial e repercutindo na vida sertaneja, sem dúvida afetada também pela Revolução de 1930.
Tadeu Rocha também testemunha a existência do "jornalzinho municipal”, onde o professor Zezinho Limeira publica imaginárias cartas amorosas (Tadeu Rocha, 1964).
Tratava-se de jornal sem periodicidade, conforme testemunho prestado por Valdemar ao redator da nota biográfica contida no introito da segunda edição do seu livro sobre Graciliano Ramos.
Seu ingresso no jornalismo diário só se daria em 1933, quando publica reportagens no vespertino maceioense O Estado, passando depois a atuar como correspondente da Gazeta de Alagoas e do Diário de Pernambuco.
Bandeira de luta
Somente em 1959, Valdemar de Souza Lima abandona a postura de mediador das notícias que tinham como cenário o sertão alagoano para se converter em protagonista. É exatamente na ocasião em que toma conhecimento da demolição potencial da casa em que Graciliano Ramos viveu em Palmeira dos Índios, ali produzindo os primeiros romances.
Ele promove uma renhida campanha para salvar esse patrimônio histórico, preservando o imóvel e nele criando um museu destinado a resgatar a memória do seu ocupante emblemático.
A vitória foi comemorada em 1971, quando ele já se encontrava residindo em Brasília.
Mas a sua bandeira de luta mereceu apoio decisivo de muitos intelectuais nordestinos, dentre eles o santanense Tadeu Rocha, seu companheiro de mocidade na terra adotiva, com o qual manteve intensa correspondência, durante e após sua cruzada graciliânica.
José Marques de Melo, 2010, do artigo
“Vozes que ampliam as fronteiras santanenses muito além das margens do Ipanema”
Sertão Glocal: um mar de ideias brota às margens do Ipanema, Maceió, 2010.
Que pesquisa profunda, Xará!
ResponderExcluirRealmente você traz algo inédito e revelador sobre a vida de Valdemar de Souza Lima..
Parabéns pelo trabalho!!