O correr da vida tem seus mistérios. Muitas vezes, as razões perpassam a compreensão humana e nem adianta tentar argumentar porque jamais deixaremos a condição inata de aprendizes. Como já dizia o poetisa: “Viver ultrapassa todo entendimento.”
De uns tempos pra cá o número de animais de rua tem crescido muito nas cidades. Igualmente tem crescido o número de cuidadores voluntários e abnegados em defesa da causa, porém em proporção desigual. Na rua FGF, vizinhos parceiros alimentam uma dezena de gatos, entre adultos e filhotes. Na prática, somos impactados pela forma brutal com que a realidade se apresenta, desmistificando a sina de que têm sete vidas. Do nada, novatos se juntam a gataria. Outros, de repente, relegados ao abandono e à incerteza da vida nas ruas, morrem precocemente.
Foi assim que surgiu, no ano passado, uma dócil gatinha, SRD, que a chamamos de Florzinha, uma alusão ao clássico da literatura de Jorge Amado(1912-2001) “Dona Flor e seus dois maridos”. A felina era cortejada por dois gatos - Nininho e Cabeção - que se engalfinhavam na partilha da ração, numa clara disputa de domínio territorial. Amigos e rivais, toleravam-se. Chegavam discretamente, sempre rosnando quando via o outro. Florzinha, seguindo o curso normal da existência, não tardou a atingir sua maturidade biológica e aparecer prenhe. Não se sabia qual deles era o pai. Talvez os dois - Nininho e Cabeção -, pois há essa possibilidade quando as fêmeas acasalam com machos diferentes durante o mesmo período fértil.
A mãe de primeira viagem já apareceu com as crias passeando na rua. Infelizmente não duraram muito tempo, visto que os filhotes foram mortos por cães de rua que circulam diariamente no trecho. No momento em que o vizinho percebeu que os filhotes estavam mortos, os recolheram para enterrar em terreno próximo. Quando a mãe percebeu que o voluntário pegou os animais mortos, miava copiosamente externando sua dor enquanto acompanhava os corpos sem vida para serem enterrados no terreno baldio. Verossimilhança entre animais e humanos não é mera coincidência. Afinal, não há dor maior nesse mundo do que a perda de um filho, seja bicho ou gente.
Alguns dias após o desaparecimento das crias ela também se recolheu e, aos poucos, retomou a rotina dos bichanos. Continuou amável com aqueles que lhe alimentavam diariamente. Porém, chegou o inverno e a situação ficou mais vulnerável para aqueles que vivem ao léu.
Choveu torrencialmente por várias horas. Por volta das 23h recebi uma mensagem via Whatsapp do vizinho dizendo-me que quando foi entrar em casa, havia um gato morto em frente à garagem. Imediatamente retornei o contato perguntando qual era a cor. Ele me respondeu que era cinza e branco. Então, tive um pressentimento de que era a Florzinha. Como chovia muito, resolvi checar as câmeras de segurança e aí se confirmou o pior. A Florzinha estava morta, estirada no meio da rua.
Indignado com a sua morte, averiguei um pouco mais para entender o que havia acontecido. Revisei as gravações e encontrei. Estava lá: Mais cedo, sob a chuva, ela estava recolhida na sarjeta, mesmo tendo abrigo bem perto dali, numa casa abandonada. Improvável seria que estivesse naquela circunstância.
Num dado momento, vem uma camionete numa velocidade compatível para o trajeto. Quando o carro se aproxima, ofuscada pelos faróis, ela se atrapalha e corre para o meio da rua e é atingida na cabeça pelo pneu do carro. Não foi esmagada, mas teve morte instantânea e ali mesmo ficou! Na minha avaliação não houve culpa do motorista. O efeito sobreveio à causa. Ao ver a cena fiquei chocado, obrigando-me a agir com celeridade para não deixar o corpo estendido no meio da rua, correndo o risco de ser dilacerado por outro veículo.
Chovia forte. Era quase meia noite. No breu do aguaceiro, o som da chuva dominava o silêncio. Parecia cenário de um filme de suspense. Com o apoio de filha simpatizante da causa, saímos para fazer o que precisava ser feito. Com tristeza, recolhemos o corpo inerte e ensopado da gata. Embrulhamos em sacolas plásticas e o guardamos no jardim para ser enterrado no dia seguinte. Constatar que aquele dócil ser viveu tão pouco causou-me tristeza e me deixou reflexivo por vários dias.
No dia seguinte, procurei um local significativo e encontrei: À sombra de uma acácia-mimosa florida enterrei-a. Nas manhãs, quando saio para minha caminhada matinal, meu itinerário inclui passagem pela sombra da acácia. Amiúde, os bem-te-vis que ali se reúnem em seus galhos gorjeiam e saúdam o dia que se inicia. Florzinha, a gata encantada, subiu e não mais desceu da árvore, virou flor. A cada florada ressurge mais vigorosa. “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem!” É a vida!
Maio, 2024
Crônica extraordinária. Poética e pungente a um só tempo, nos remete à lembrança de todos os seres supostamente irracionais que marcaram nossa vida. Quem nunca teve um pode ser classificado como ser desumano.
ResponderExcluirCertamente quem já teve ou conviveu com um desses seres, considerados como inferiores, pela lógica irracional dos ditos superiores, sabe o que é desfrutar de sentimento incondicional. O dito "ser humano" ainda está muito aquém de alcançar esse nível. Por isso a humanidade continua regredindo com o tempo.
ResponderExcluirBelo texto para refletirmos sobre o que verdadeiramente importa na vida, que é saber que nada se traz e nada se leva, por isso enquanto aqui estivermos, que façamos alguma diferença, digna de ser eternizada na memória de quem continuar.
Boa tarde Xará!
ResponderExcluirRelato poético, mas baseado na vida real.
Parabéns!
E que São Francisco de Assis continue protegendo essas criaturas indefesas...
Um abraço.
Lindo, João! Maravilhosa crônica! Parabéns, meu amigo!
ResponderExcluirLindo, João. Crônica maravilhosa, meu amigo. Parabéns! Grande abraço, Goretti Brandão.
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