Pr. da Bandeira, capela N. Sra. da Assunção e ao fundo, Grupo Escolar Pe. Francisco Correia. Década de 1960. A praça era repleta de pés de figo. Foto: Acervo pessoal |
Naquele dia pensei comigo mesmo: na hora de ir à escola, irei comprar aquele gibi do Mickey Mouse que vi na passada na banca de revista de dona Zilda, vizinho ao Hotel Santanense. Depois de comprado, minha mãe não vai ter mais o que fazer. Ali bem perto tinha a mercearia de seu João Soares, onde a gente aproveitava para comprar as balas soft conhecidas como “chumbrego”, de diversas cores e jujubas. Meu pai havia dado alguns trocados que eram suficientes para a compra da revista e das guloseimas. Eu adorava ler os quadrinhos, principalmente dos personagens da família Disney. Ainda guardo o aroma acre das revistas.
Outra mania era ler os gibis de Tex Willer, um dos mais famosos cowboys dos quadrinhos. Criado pelos italianos e que sobreviveu mesmo quando o gênero faroeste teve seu maior declínio no final dos anos 1980 e durante toda a década de 1990. Tex ainda continua vendendo bem nos atuais mercados da Itália e do Brasil, mesmo com a concorrência dos super-heróis americanos e a invasão arrasadora dos mangás japoneses.
Não faltavam os álbuns de figurinhas. Coleções de todo tipo que nos viciaram em comprar os pacotinhos com três figurinhas para colar os espaços. Para solucionar a inutilidade das figuras repetidas a gente usava o jogo do bafo-bafo na tentativa de encontrar alguma figurinha inédita. Cada jogador descartava uma figura. Em seguida, cada um batia com a mão em concha contra as figurinhas numa superfície plana na tentativa de desvirá-las. Ganhava a rodada, quem conseguia desvirar todas as figuras com uma única batida.
Ao lado do Hotel ficava a banca de revistas Foto: Acervo da família Barros |
De casa à escola era relativamente perto. Eu saia um pouco mais cedo e ficava na Praça da Bandeira que tinha alguns brinquedos instalados, mas eu gostava mesmo de me pendurar nos cipós pendentes dos pés de Fícus microcarpa, que a gente chamava de pé de figo. Porém, naquele dia, levei azar. O cipó se partiu enquanto balançava e eu caí com as costas em cima das raízes salientes. O impacto foi tão violento que fiquei sem fala por alguns instantes. Coisas de menino. Não disse nada a ninguém com vergonha! Fingi que não tinha acontecido nada! Só eu sei a dor que senti e a agonia de tentar falar e não poder.
Originários do Continente Asiático, a praça era repleta de pés de ficus, que embelezavam e sombreavam o espaço. Sua folhagem densa e brilhante refletia a luz do sol, produzindo uma sombra refrescante no impiedoso sol sertanejo. Era a árvore certa para o lugar certo. As folhas de um verde intenso quando dobradas e apertadas com jeito, serviam de apitos que os meninos utilizavam acintosamente para infernizar a vida de quem passava e ainda por cima fazendo mungangas. Antes de entrar no Grupo Escolar Padre Francisco Correia perfilados para cantar o hino nacional, a gente jogava fora com medo das reprimendas da diretora, dona Marinita.
Outras vezes éramos atormentados pela praga de lacerdinhas que infestavam as árvores e o fardamento escolar. Quando caiam nos olhos ardiam como pimenta fazendo a gente desembestar para lavá-los rapidamente. De tempos em tempos a praga voltava.
O pequeno inseto, conhecido como tripes G. Figorum desembarcou no Brasil, provavelmente em mudas contaminadas, bem no início dos anos 1960. E a partir dessa época, foram se proliferando pelos logradouros públicos da portuária cidade do Rio de Janeiro, onde crescia um grande número de árvores adultas. Ano a ano, a praga foi se alastrando, por onde encontrava seu hospedeiro preferido, de norte a sul do país.
Nessa época, no Rio de Janeiro, o tripes ganhou o apelido de “lacerdinha”, uma sátira ao político Carlos Lacerda que então governava o Estado da Guanabara (1960-1965) e o apelido pegou. Pegou tanto que popularmente o fícus é hoje conhecido como: árvore-lacerdinha, fícus-lacerdinha ou figueira-lacerdinha. O apelido também é bastante citado na internet, inclusive em sites estrangeiros e até mesmo em livros científicos como nome popular, tanto para planta como para sua praga, o tripes G. Figorum.
Era o período das festividades à Nossa Senhora da Assunção celebradas em agosto de cada ano na centenária capelinha da praça. O bairro estava em festa. Era evidente o burburinho do povo na rua e o alvoroço ali bem perto, na casa de dona Marina Marques, zeladora da capela, cuidando dos preparativos para o cerimonial ao anoitecer.
O Parque de Diversões Lima se instalou na praça ao lado da capela com alguns brinquedos: roda gigante de pequeno porte, barcos e trivoli. O serviço de alto-falante do parque tocava as músicas de destaque. Nunca esqueci de uma das canções daquele ano; “Caminhemos”, (1947) de autoria de Herivelto Martins(1912-1992), regravação moderna e estilosa na voz Vanusa (1947-2020) que fez muito sucesso em 1969. Eu gostava da música pela sua beleza e a associava à festa, porém ainda desconhecia o amor e seus ardis. Não sabia que “o amor da gente é como um grão, uma semente de ilusão que tem que morrer pra germinar”.
Quando dei por mim, a praça já não era a mesma. As árvores e as lacerdinhas tinham sido expulsas em nome da ordem pública. A festa profana foi extinta e o itinerante Parque de Diversões Lima partiu na poeira da estrada e nunca mais retornou. Permaneceram os credos, as ladainhas e os padres-nossos. Aprovado no exame de admissão ao ginásio, eu fui para o Colégio Estadual. Meu caminho das letras foi ladrilhado pela leveza luxuosa dos álbuns, enciclopédias e gibis revisitados na banca de dona Zilda, na insistência dos dias e à mercê da inconstância dos meninos. Num piscar de olhos a banca de revistas se encantou. Ficaram as lembranças, razão desse tributo.
Março, 2024
Assim a vida segue... História aqui, História ali. Chegará o tempo que até as lembranças irão embora. Junto conosco! "Passarão os Céus e a terra, mas minhas Palavras não Passarão ". Jesus Cristo! Mateus: 24:35
ResponderExcluirEncontrei D. Zilda recentemente em Piranhas, acompanhada de filhas, netos, genros, amigos , uma tropa. Quando a vi, me veio todas essas lembranças. Ela tem uma neta, filha de Zilma, que junto com o esposo ( chefe de cozinha), abriram um excelente restaurante lá. Restaurante Nalva. Quem se dispor a ir não vai se arrepender.Nota 10!!!!!
ResponderExcluirPuxa vida, João...eu nunca me lembraria que o nome da dona de revistas era dona Zilda....kkkkkk também gastava todos os meus centavos ali...ainda tenho os álbuns, comigo
ResponderExcluirTúnel do tempo vivido ao sabor dos ventos e hoje memórias o registram com leveza e poesia, parabéns !!!
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