Bloco da Ursa. Foto Hugo Muniz |
Dos memoráveis carnavais santanenses, um marcou profundamente as nossas vidas. Como de praxe, Papafigo reunia a turma na frente da casa de Cuíca. Alguns pediam água, aguardente, agulha para os últimos preparos e outros precisavam ir ao banheiro. Portanto, a casa do anfitrião servia de barracão e de concentração.
Por um motivo banal, um desentendimento do Papafigo com Lelê, saímos do Bloco do Cão e resolvemos criar outro. Naquela briga entre eles, o bloco acabou perdendo muitos integrantes que imediatamente aderiram à nova sociedade carnavalesca.
O bloco materializou-se com a chegada de Toinho Barbeiro, que lembrou de ter trazido de Maceió uma fantasia de urso e como ele morava próximo, já veio com a indumentária nas mãos. Cuíca morava num ponto estratégico, ligando as ruas que se cruzavam ali na pracinha, defronte ao bar de Erasmo.
Na verdade, Cuíca e esposa tinham vindo do primeiro andar do prédio de Branquinho dentista, logo se acomodaram na casa que depois foi ocupada por Ciço de Ambrosina, que aproveitava o espaço da rua e da praça usando-os como oficina mecânica para automóveis. No outro lado da calçada, estava localizada a oficina de geladeira de Valter, irmão de Zé Pinto. Aquele trecho do bairro São Pedro se transformava no quartel general do frevo.
Ali bem perto funcionava a concentração e a dispersão carnavalesca. O Bloco do Cão recebeu uma reprimenda de Erasmo, não permitindo o uso do seu salão, nem do banheiro, porque estava faltando água e a sujeira era muita.
A nova agremiação já estava animada com Ronaldinho dentro da fantasia de urso e o estoque de bebidas destinado ao bloco de Papafigo naturalmente começou a fazer efeito nos carnavalescos, que começaram circulando à pracinha, depois subindo pela rua Nossa Senhora de Lourdes e seguindo para rua São Pedro, atraindo pessoas que saíram de suas casas, aplaudiram e incentivaram o engraçado bloco.
A banda já estava montada e todos reunidos no bloco desfilaram pelas ruas Nova e Martins Vieira, passamos pela igrejinha de Nossa Senhora Assunção, circulamos o Monumento do Jegue e descemos em direção a delegacia. Era só o esquenta!
Os brincantes retornaram para o mesmo local de onde partiram, pois o repasto já estava preparado e servido, regado a galinha, peixe, caldinho e muita cachaça!
A farra continuou ali na praça, pois além dos comes e bebes na casa de Cuíca, o bar de Erasmo passou a servir à turba. As pessoas eram atraídas pelo bloco e seguiam para o bar, onde o mela mela não era mais proibido, pois Erasmo estava faturando alto!
Lá pelas três da tarde, encosta o caminhão basculante de Nilvo, filho de seu Abílio Pereira! Ele tinha entregado uma carga de pedra e tinha ido esfriar a goela, que ninguém é de ferro!
Pois bem, depois de umas geladas, o caçambeiro sugeriu desfilar pelas ruas da cidade. Um veículo de carregar pedra, areia, oblíquo nas laterais, sem apoio algum, nem assento. Loucura de carnaval! E para subir pisando nos pneus!! Empurrar mulheres e homens gordos pra cima da caçamba não era tarefa fácil !!!
Eu estava com Carmem, pois no bloco havia casais da terra e visitantes. Inclusive, Papafigo tinha vindo de Maceió para a casa de Lelê e trouxe consigo uma galega que não era de se jogar fora. No momento da visitante subir na caçamba, eu gentilmente me propus a ajudá-la, mas foi um labafero! Carmem partiu pra cima de mim com quatro pedras na mão:
- Você devia estar comigo, ajudando-me a subir nesse monte de ferro e não dar uma de Don Juan, seu safado!!!
Passada a refrega, todos acomodados, sei lá como, fomos cantando as belas canções carnavalescas no cubículo metálico, que mais parecia uma panela quente, sem nenhum conforto ou segurança. Entre um pulo aqui e outro pulo ali, éramos todos brincantes do frevo equilibrista nos solavancos do lastro quente da caçamba, acompanhado pelo barulho ensurdecedor do atrito dos ferros e a lataria do veículo.
Nisso, Ronaldinho cansou de ser urso e perguntou quem queria substituí-lo, ninguém respondeu. Ele insistiu:
- Eu num guento mais!
Aí a tal galega respondeu:
- Eu vou experimentar a sua fantasia!
E logo enfiou-se por baixo daquele monte de agave e pano, não esquecendo de colocar a máscara no rosto. Eu por ali perto, segurei a corda que amarrava a cintura da ursa. Quando a cabroeira viu que o Urso era Ursa, aproximou-se da corda, mas eu não a soltei de jeito nenhum, nem mesmo levando chute e unhada de Carmem!
Desfilamos pelas vias principais de Santana. Já era noite e decidimos marcar presença também nas festividades de Olho d’água das Flores, mesmo cansados bebendo o dia todo cachaça e cerveja. No meio do caminho, foi necessário bater na lata da capota do veículo e pedir para o motorista parar, pois a maioria precisava ir ao banheiro campal.
Eu ainda não tinha soltado a corda que estava amarrada na cintura da Ursa, e também os tapas e chutes na canela não pararam, mesmo assim resisti, a corda não soltei!
Descemos da caçamba que parou no acostamento e nos dirigimos para o mato. Eu e a Ursa, ela na frente e eu atrás, íamos nos distanciando da turma. A carnavalesca, em sua mansidão, percebeu articulação nada pacífica das folionas. Carmem induziu as colegas que vieram em direção à brincante com ameaças incisivas, aí eu já tinha largado a corda e a Ursa nem chegou a fazer as necessidades. Vendo-se em situação de perigo iminente, desembestou na caatinga adentro, nem a fantasia teve tempo de tirar, e sumiu na escuridão da noite!!!
Fevereiro, 2024
Washington Viana Alves (Dotinha) é santanense, professor emérito da UNEAL, escritor, violonista, cantor e compositor. Crônica faz parte do seu livro de estreia “Santana em chiste” que se encontra no prelo.
Eu sofri com a fantasia de urso, calor da molesta! Imaginem a galega.kkkk .Saudade dos carnavais de Santana.
ResponderExcluirBELO ARTIGO meu velho e Bom amigo Dotinha..
ExcluirArtista passa cada aperto!!!
ExcluirParabéns ao amigo, escritor Washington "Dotinha" belíssima crônica carnavalesca. Aguardaremos com ansiedade o livro "Santana em Chistes"
ResponderExcluirValeu. Grato!
ExcluirAté os dias atuais, procura-se uma ursa galega!!!! (Risos).
ResponderExcluirParabéns pela crônica.
Pacífica visitante!
ExcluirParabéns, Dotinha! Um relato nítido de um bloco Carnavalesco..Muito bom !
ResponderExcluirEra muita resenha!
Excluir