Feira de Santana do Ipanema |
Um jumento de cangalha,
Moleque correndo nu,
Uma abelha capuchu
Se arranchando na palha.
Um beco cheio de tralha,
Uma carniça com fedor
E um barrão fuçador,
De lama, todo vestido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Um menino de recado
Que só anda na carreira.
Uma discussão na feira
Do patrão com empregado.
Algum pedinte aleijado
Dizendo meu bom senhor,
Uma esmola, por favor,
Para quem vive esquecido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Pai dizendo para o filho:
“Você vai entrar na peia!”.
Uma plantação de meia
De algodão e de milho.
Uma broa de sequilho,
Merenda do agricultor.
Papagaio falador
Bico sujo e enxerido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Um cachorro perdigueiro,
Um tiro de lazarina.
O clarão da lamparina,
Iluminando o terreiro.
Berro de pai de chiqueiro
Quando vê o sol se pôr.
Mocho no chiqueirador,
Esperando ser vendido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Uma noite de São João,
Os compadres de fogueira.
Uma morena faceira,
Foco de toda atenção.
Pipoco do foguetão
Provocando dissabor.
Na procissão, um andor
Sendo, com fé, conduzido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
A festa do padroeiro
Com suas incríveis cenas.
Nove noites de novenas,
Com pastoril e guerreiro.
Mateu dançando ligeiro,
Parecendo um beija-flor.
Canto do mestre em louvor
Ao padroeiro querido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Dois cantadores de coco,
Numa rua, se arengando.
Uma criança chorando
Por ter topado num toco.
Um velho diz: “Estou mouco!
Aumente o som, por favor! ”
Responde, então, o cantor:
Assim, lhe poupo o ouvido! ”:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
O vermelhão do arrebol
Por detrás de algum monte,
Dizendo pra o horizonte:
“Tu és o túmulo do sol! ”
À noite, com seu lençol,
Sobre santo e pecador.
O matuto e o doutor,
O bestalhão e o sabido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Um marchante retalhando
Carne de boi e carneiro.
Na banca dum verdureiro,
Uma cebola cheirando.
Um matuto perguntando:
“Quanto é o osso corredor? ”
Resposta do vendedor:
É dez reais o cozido! :
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Um carro de boi na estrada
Tangido pelo carreiro.
Um aboio do vaqueiro
Atrás da rês espantada.
O sarrabulho, a buchada,
Histórias de pescador,
Uma rede no armador
Com o punho bem puído:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Um velho numa cadeira
A cochilar e peidando.
Um menino assoviando
A canção “Mulher Rendeira”.
Ressaca após bebedeira,
Aroma de um campo em flor,
Um ambulante vendedor
Dizendo: “Oh! Dia perdido! “:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Um saco de rapadura,
O doce do sertanejo.
Uma corda de caranguejo,
Adorar nuvem escura.
A bunda de tanajura
Fritada de bom sabor.
Uma dose de lambedor,
Remédio bem conhecido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Pote no pé da parede,
Deixando a água bem fria.
Talhada da melancia
Dando fim a nossa sede.
Num balanço duma rede,
Cochilo restaurador.
Velho a beber licor
Para ficar enxerido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Uma debulha de feijão
Com base em “Mineiro Pau”.
Preparação de mingau,
Comer chouriço com pão.
“Difruço” e constipação,
Oração do rezador
Pra todo tipo de dor
Em lugar de comprimido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Uma casaca de couro
Em seu ninho de graveto.
O cantar do anu preto
Lembrando gemido e choro.
A zoada do besouro
Igual ronco de motor.
As cores do beija-flor
Pondo o campo mais florido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Pau de sebo e quebra pote
Na maior animação.
Num jogo de garrafão,
Menino dando pinote.
Punido com um cocorote
Na cabeça do invasor.
Alguns abrem o chorador
Mas é muito divertido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Uma caçada na serra
De veado e de tatu.
Disputa de boi zebu,
Um canarinho-da-terra.
Galo decretando guerra
No amanhecer com vigor.
Histórias de caçador
Com exagero desmedido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Uma farra de cachaça
Com tira gosto de umbu.
Uma panela de angu
Com a mistura de caça.
Caldo de feijão macaça,
Ruim que só o estupor.
A chupeta e o babador
De guri recém-nascido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Bate-papo de calçada
Entre compadre e comadre.
Bênção pedida a um padre,
Brisa cruzar madrugada.
Uma garapa gelada
Para aplacar o calor.
Galo por despertador,
Com seu canto destemido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Um caminhão de romeiro
Na estrada de Canindé.
Um gostoso arrasta-pé
Com sanfona e com pandeiro.
O toque do sanfoneiro
Solando canção de amor.
Carro de som, locutor
Defendendo seu partido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Uma pracinha enfeitada
Num período de natal.
Na época do carnaval,
Maisena sendo atirada.
Conversa desaforada
De juiz com promotor.
Sob o sol, no quarador,
Um lençol muito encardido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
O sofrer do nordestino
Quando vem a estiada.
Meizinha da garrafada
Pra males do intestino.
Os causos de Virgulino,
Criminoso aterrador.
Histórias de matador
De cangaceiro e bandido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Novenas no mês de maio,
Vaquejada, apartação,
Uma corrida de mourão,
Enchente, trovão e raio.
Conversa de papagaio,
Puxa-saco, adulador,
Um cigano enganador
E um político fingido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Uma arupemba e caçuá,
Canga, fueiro e cocão,
Sarapatel e rubacão,
Punaré, mocó, preá.
Umbu, quixaba e juá,
Trilha, beco e corredor.
Fazendeiro e criador,
Confusão e alarido:
Isso é cagado e cuspido.
Paisagem de interior
Um mocó desconfiado,
Uma codorna ligeira,
Uma galinha poedeira
E um jumento empacado.
Caçador determinado,
Um cachorro farejador,
Um touro reprodutor
E um cassaco fedido:
Isso é cagado e cuspido
Paisagem de interior.
Mote extraído da famosa poesia de Jessier Quirino.
Claudio Vieira de Souza
Nota explicativa:
Conforme explica o poeta Jessier Quirino a expressão “cagado e cuspido” é uma corruptela da expressão ibérica “Em Carrara esculpido”, (algo parecido) depois foi transformada em “encarnado e esculpido” e o matuto transformou em “cagado e cuspido”.
Poesia foi vencedora de concurso de literatura de cordel realizado pela Secretaria de Cultura do Estado de Alagoas, em 2022.
Cláudio Vieira de Souza, filho de José Vieira de Souza e Doralice Vieira de Souza, nascido em 22.02.1955, em São José da Tapera. Nos primeiros dias de vida a família se mudou para Riacho Grande à época município de Santana do Ipanema, hoje Senador Rui Palmeira. Morou e estudou em Riacho Grande, Carneiros, Santana do Ipanema, Juazeiro do Norte, Paulo Afonso e Maceió, onde se graduou em Direito. Casou-se com Maria Doroteia, filha de seu Zeca Ricardo.
Pai do Rodolfo e Lucas, avô do Luca, Miguel e João. Advogado de profissão e poeta repentista nas horas vagas.
O primeiro emprego foi vendedor de tecidos nas lojas Lima em Paulo Afonso. Foi bancário do Banco Real em Paulo Afonso, Banorte e Sudameris em Maceió. Advogado e vice-prefeito de Senador Rui Palmeira. Foi advogado da empresa de economia mista do Estado, Carhp (Cia Alagoana de Recursos Humanos e Patrimoniais), advogado da Sumov-Superintendência Municipal de Viação e Obras) da prefeitura de Maceió, advogado da Arsal, delegado do MEC, diretor da Sudene de Alagoas, além de defensor público estadual. Atualmente está aposentado e reside em Maceió.
Assisti Jessier Quirino declamar esta poesia e contar outros "causos " no Teatro Santa Isabel, aqui em Recife, simplesmente imperdível. Parabéns e sucesso !!!!
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