Cinzas de um Carnaval: Zé Vermelho, o marceneiro artista por Oscar Silva

 




Apresentação da Escola de Samba "Unidos do Monumento", no Tênis
Clube Santanense,1970.
Foto extraída do livro "Fruta de Palma".





Há indivíduos cujo nome civil se perde na poeira do turbilhão popular. Aí vivem eles conhecidos, admirados ou mesmo queridos sob a capa de um simples apelido recebido em criança. É que ao povo pouco interessa o verdadeiro nome das criaturas, salvo quando estas não são dignas da estima popular.

Zé Vermelho era um verdadeiro filho do povo santanense. Agarrado à plaina e ao serrote na oficina de marceneiro ou plantando milho e feijão no roçado, não recuava, entretanto, quando um ato religioso ou cívico lhe exigia colaboração. Nas festas da Padroeira, de São João ou São Pedro, como na recepção de personagens do mundo político e comemorações de datas históricas, lá estava ele a montar palanques, a decorar cenários ou a fazer o que lhe tocasse por tarefa.

Mas, a nós meninos, o que fazia aquele homem mais estimado eram as suas atividades na Festa de Natal ou nos dias de carnaval.

Durante os festejos natalinos, o nosso divertimento predileto estava na roda de prêmios de Zé Vermelho. Um guiné de madeira, feito por ele mesmo, rodava que rodava com a palheta de chifre no peito, e, batendo por toda uma carreira de pregos sem cabeça, ia parar onde muitas vezes nem de longe existia dinheiro dos jogadores. De quando em quando, porém, o felizardo recebia uma tigela, uma tesoura marca "Corneta", uma navalha "Solingen" ou - o que mais nos alegrava - uma bola de borracha ou um realejo "Pátria Amada”.

Zé Vermelho tinha congênito o espírito da arte. Talvez ele próprio não percebesse, mas o guiné de sua roda de jogo, embora artificial, parecia bem vivo e a gritar para os jogadores: "Tou fraco! Tou fraco! Tou fraco!" E no carnaval, enquanto outros dançavam em clubes, se vestiam de urso ou faziam de negras da costa, ele andava devagarinho pelo meio da rua, enfiado em corpos de animais ou toros de madeira, tudo feito de papelão e pintado por suas mãos de verdadeiro artista. E nós meninos, que doidamente corríamos com medo dos bobos, acompanhávamos satisfeitos aquele bicho ou aquela árvore que andava na rua com pés de gente. No carnaval santanense poderia faltar tudo, menos as figuras alegóricas fabricadas por Zé Vermelho.

Todavia, 1933 estava assinalado como o ano em que deixaria de existir a sua colaboração nos festejos santanenses. Aquele ano Zé Vermelho passou-o concentrado em si mesmo, engolindo em seco ninguém sabia o quê. O homem alegre e prosaico parecia ter morrido, restando agora a sombra de um sujeito triste e carrancudo.

Belinha, sua filha, era bela mesmo. Morena clara e portadora de olhos grandes e bonitos, aquela moça zombara dos galanteios de muitos rapazes, sem dar confiança ao amor de nenhum. Mas, por um desses caprichos do destino, Belinha veio a fugir com um forasteiro de nome Genésio, sujeito detestável à primeira vista e blasonador de coragem e muita valentia.

Após as primeiras contrariedades, Zé Vermelho reatara amizade com a filha e vivia a tentar conduzir o genro para um bom caminho. Ao que constava, porém, Genésio não só era mau cidadão como ainda vivia a maltratar a esposa e a trazer para o lar os presentes venéreos adquiridos na rua do fogo.

Findava o ano de 1933 ou começava o de 1934. Certo dia, a cidade despertou alarmada com a notícia. A porta da oficina de Vermelho estava cheia de gente. Como elemento da polícia local fui chamado às pressas e, ao aproximar-me, não sei por que, tive impressão de ver o povo à espera da saída de Zé Vermelho, debaixo de uma ema ou de uma árvore de papelão, a fim de abrilhantar o carnaval santanense. Afastei para um e outro lado algumas pessoas que interceptavam a passagem pela porta e entrei. Dentro, empapado em sangue, deitado numa rede, estava Genésio, quase morto, os miolos da cabeça bolindo. Ainda falava, mas não dizia a ninguém como aquilo acontecera. Verificamos logo ter sido ele golpeado a foice, especialmente no crânio. Havia sinais de luta e luta feroz. E compreendemos ter sido Zé Vermelho com o filho Artur os autores do crime.

Embora achássemos aquilo um trabalho digno dos merecimentos da vítima, o dever nos mandava procurar e prender os criminosos. Mas Zé Vermelho não andava mais por baixo de árvores ou emas de papelão. Virara ema de verdade e ninguém que pusesse os olhos em cima dele. Seu último carnaval tinha sido aquele. Duro e sangrento. Carnaval de ferro e fogo. Fogo de ódio, do qual o genro ficara como cinzas.




Oscar Silva, 1953. Fruta de Palma, 1ª edição, 1953. 2ª edição, 1990



Conheça o autor: clique Oscar Silva

Para saber mais: Cinzas de um carnaval 

Conheça o bloco carnavalesco Negras da Costa




Comentários

  1. Hayton Rocha22/01/2024, 13:29

    “… Trazer para o lar os presentes venéreos adquiridos na rua do fogo…” é construção literária digna dos grandes escribas. Parabéns, João, pelo inspirado texto trazido sobre tão cara figura na memória sertaneja.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oscar Silva é um dos grandes escritores santanenses. Obrigado.

      Excluir
    2. Encantado com o Artigo. História doutrora. Que me deixa conhecedor ... João vc esta de parabéns meu Bom Amigo...

      Excluir
  2. Prezado João, gostaria apenas de retificar um equívoco da 2a edição do excelente livro "Fruto de palma": a foto em questão é do carnaval de 1970. Trata-se da apresentação da Escola de Samba Unidos do Monumento, no Tênis clube Santanense. De costas está o "comandante" Joãozinho de Zé V8 e de peruca branca Carlos Filemon. Tenho fotos desse evento.
    Abraços
    Júlio César

    ResponderExcluir
  3. Muito bom, João . As vezes o sangue se mescla com o amor numa aventura mortal

    ResponderExcluir

Postar um comentário