Amanheci determinado a cumprir minha promessa de fazer a travessia há muito pensada de escalar o morro do Gonçalinho, não pelo caminho tradicional, mas desbravando, fazendo escolhas a tempo e caminhando. Subida íngreme de quinhentos metros mais ou menos, com lajedos no trajeto, mandacarus, angicos e ipês. Resolvi encarar o desafio sozinho, mochila nas costas e pé na estrada.
O primeiro desafio era atravessar o rio Ipanema de águas ausentes, recolhidas nos veios encantados, sonhando no berço de pedras, seixos e leito de areias transitórias. Lembranças que passam dentro da mente veloz, clareando a lição de que sem esforço da busca não há a alegria do encontro.
Seguindo o itinerário intuitivo, identificando pistas passo a passo e pouco a pouco. Entre derrapadas e escorregões, deparei-me com um umbuzeiro carregado de frutos de vez. Contudo, quem colhe fora do tempo, não sabe o que o tempo dá. Ali mesmo fiz uma pausa benfazeja a sombra da árvore sagrada dos sertões. O cheiro do mato e dos umbus eram um deslumbramento aos sentidos. A vontade de ficar, mas era hora de prosseguir. Esse aperreio interior entre encontros e despedidas era o meu desassossego naquele instante de descuido.
O silêncio e o canto dos pássaros eram as insígnias do meu roteiro. Andando entre mulungus, juremas e catingueiras, quase chegando ao topo, achei a entrada de uma gruta encravada na rocha. Entrei, ciente dos riscos invisíveis. A minha sorte grande era uma pequena luz que cintilava parecendo ser o fim da caverna. Andei, andei, e o caminhar parecia infindável. Quase sem querer, cheguei ao final do vale da sombra e escuridão. Agora era luz, muito sol e montes alternados entre os vales. De punhos cerrados, solto a voz nas estradas e já não posso parar. Sobra-me o futuro que tenho nas mãos.
Estou nas Montanhas Gerais, encontrei um caminho que faz a conexão do interior com o interior. Uma travessia muito maior que a canção. Caminhos de aprendizados a duras penas. Vou querer começar de novo e se não der, meu canto será um lamento sertanejo.
Foi assim que me vi passar por mim, aventureiro desbravando vales e montanhas aqui e alhures atraído pelos sons e os mistérios cinzentos dos ventos e dos morros cantantes. Perto da noite estou, mas eu não me acho perdido.
“Fui andando… Meus passos não eram pra chegar porque não havia chegada. Nem desejos de ficar parado no meio do caminho. Fui andando.” É caminhando que o caminho se faz. E assim vou completando travessias.
“Quando meus olhos estão sujos de civilização, cresce por dentro deles um desejo de árvores e aves”.
Dezembro, 2023
Citações: Poeta Manoel de Barros (1916-2014)
Escalou o Gonçalinho dando um mergulho em seu próprio interior.
ResponderExcluirGostei.
Abraços do Antônio Sobrinho
Valeu Tonho. Grato!
ExcluirCadê o livro primo!
ResponderExcluirPrimo, está a caminho! 😁
ExcluirCadê o livro primo!
ResponderExcluirExatamente!! Nos favoreça com um livro meu amigo!!!!! Sua narrativa é simplesmente saborosa.
ResponderExcluirCrônica recheada de poesia ou uma poesia em forma de crônica? Tal qual aquela velha propaganda/ dúvida do biscoito Tostines, que não se sabia se vendia mais porque era fresquinho, ou era fresquinho porque se vendia mais, atravessei o texto numa tirada só de olhar, saboreando-o, e fiquei a desejar pelo seu prolongamento. Bravo!!!
ResponderExcluirSinto-me lisonjeado com as suas palavras. Obrigado.
ExcluirMuito bem Xará!
ResponderExcluirParabéns por mais uma crônica, recheada de trocadilhos, realidades, sonhos, emoção e contemplação.
Um abraço do seu colega e amigo
João Neto Oliveira
Valeu Xará! Muitos não sabem que Santana tem 7 colinas no seu entorno. Grato!
ExcluirBela crônica amigo João Neto
ResponderExcluirSou eterno aprendiz. Obrigado pelo incentivo.
ExcluirQue bela escada pelo próprio interior..
ResponderExcluirParabéns, Xará!
Xará, ainda falta eu conhecer a serra do Gugy. Realizarei em breve.
ExcluirBom dia, caro João Neto Felix. Muito boa, essa sua experiência junto à natureza; e excelente (alguns graus acima de "muito boa") crônica, que expõe sua significativa coragem. Quando eu era criança, me embrenhava pelas trilhas e atalhos da caatinga, conhecia razoavelmente bem os nichos mais interessantes, mas não tinha a menor ideia de que ali, por onde você escalou o morro, encontraria ambiente tão misterioso. Se dele eu tivesse conhecimento quando tinha lá meus 12 ou 13 anos, certamente eu iria conhecê-lo. E à noite, nos degraus da capela de N.S. da Assunção, eu narraria minha crônica. Claro que iria contar sobre as cobras que matei, o teiú que abati e assei numa poça de lava vulcânica...Você acha que ninguém acreditaria? Pois eu conhecia os ouvidos certos pra contar a história nesses termos. Coincidentemente, ele está logo aí em cima... Aí, João Neto do Mato, era essa a caverna da qual lhe falei ali por volta de 1963, num banco da Praça do Monumento. Isso faz só 60 anos, e me lembro que recordei essa passagem quando fui lhe visitar no Mato Grosso do Sul. Abraço a todos!
ResponderExcluirFernando, nobre escritor, obrigado pela sua presença aqui. Há muitos mistérios nas serras que nos rodeiam.
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