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Quando eu cheguei ao almoxarifado, Nadinho (Reginaldo José Raymundo, 1949-2019) já estava debruçado sobre a placa de gelatina do hectógrafo, copiando os últimos balancetes e replicando-os no enorme livro contábil. Com um rolo, pressionava as folhas sobre a placa para que as cópias tivessem a melhor nitidez possível. Aquele trabalho meticuloso era exclusivamente da sua competência, não delegava para mais ninguém.
Entre um instante e outro cantarolava, repetidamente, um pequeno trecho da canção que mais lhe parecia marcante da composição João e Maria, de autoria de Chico Buarque e Sivuca, gravada na voz de Nara Leão em 1977. (Clique para ouvir) Eu observava admirado aquele homenzarrão com coração de menino que cantava entusiasmado pra si mesmo.
“Agora eu era herói
E meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você além das outras três…”
Pausava, reclamava da qualidade da gelatina e, em seguida, reiniciava o canto de uma estrofe só, como um elepê arranhado no toca-discos que sempre voltava aos mesmos microssulcos. Quem chegava por perto se admirava e ria. Aqui, acolá alguém dizia:
- Nadinho, cante o resto, home!
Ele olhava com as feições de riso, mas acanhado, saia em silêncio pra tomar um cafezinho. Ninguém sabia - nem ele - quanto tempo durava o ritual até encasquetar outra música e tudo recomeçar. A música era seu grande refúgio para disfarçar as mazelas da vida. Anos depois ele me confidenciou que eu o tinha influenciado musicalmente. Na verdade, a gente influencia e é influenciado. Eu era apenas um adolescente e tudo era uma grande novidade para mim que nunca havia deixado a barra da saia da minha mãe.
Nadinho foi meu professor quando fui admitido como menor aprendiz em serviços gerais na década de 1970 no Banco do Brasil. Formamos dupla nos trabalhos do almoxarifado: arquivos, acondicionamento de documentos contábeis, controle e fornecimento de material de expediente, personalização de talão de cheques e fichas gráficas, dentre outras coisas. Tudo foi automatizado, exceto um detalhe ou outro.
A amizade que iniciamos perdurou até a sua morte em 2019, em consequência da diabetes. A música sempre foi tema recorrente na nossa convivência. Filho de antigo gari da prefeitura, sua mãe tinha transtornos mentais e ele praticamente foi criado por outra família. Tornou-se homem de bem, mas a urgência de viver o impediu de frequentar os estudos como desejava. Embora não falasse sobre o tema, era perceptível sua frustração.
Iniciou trabalho de serviçal na república dos bancários, não tardando a ingressar no banco no quadro de auxiliar de portaria. Com a dedicação que lhe era peculiar se tornou profissional de excelência pelo seu comprometimento. Só tinha uma coisa de que não gostava e fazia questão de dizer: - Eu odeio reuniões! Alegava que era muita conversa para pouca ação.
Nas festas, quando bebia, tornava-se declamador poético de improviso, cujos versos tinham uma terminação que revelava o trauma que carregava nos recônditos do seu ser:
- Perdoe-me porque não sei ler, nem escrever! E chorava, copiosamente!
Quando uma única vez recitou para mim, pedi para não mais repetisse, pois ele era um coerente cidadão, cooperativo e solidário, independente do seu grau de instrução. Pai de família querido, profissional competente e admirado por todos os que o conheciam. Quem de nós não tem uma saudade antiga ou um sonho não realizado? Suas qualidades superavam e muito outras limitações. Nadinho e Marlene acolheram em sua casa parentes, aderentes e quem mais chegasse.
Com ajuda dos filhos que liam os manuais e apostilas dos cursos que fazia, tornou-se exímio eletricista com extensa lista de clientes cujo atendimento se dava nos poucos momentos de folga e não dava pra quem queria. Abebeano voluntário, prestou tanto serviço à associação que foi agraciado com o título de sócio benemérito e já não havia outra categoria a ascender.
Na década de 1980, acompanhou a delegação de futebol de salão da AABB que se sagrou campeã estadual em São Miguel dos Campos. Lá pras tantas, já meio embriagado de tanta comemoração, começou a cantar trecho da canção Força Estranha, de Caetano Veloso, gravada por Roberto Carlos em 1978. (Clique para assistir)
“Eu vi o menino correndo eu vi o tempo
Brincando ao redor do caminho daquele menino…”
Reiteradamente só cantava essa estrofe. Na viagem de volta, continuou com a cantilena. Alternando entre cochilos e sussurros, dava show de monotonia. Isso foi irritando os atletas que estavam cansados e queriam dormir, mas o artista não deixava, até que um deles perdeu a paciência e gritou:
Nadinho, bote o peste desse menino pra dormir que a gente não aguenta mais não, home! Estamos cansados, queremos paz e silêncio…
Todos gargalharam e ninguém mais dormiu, nem teve o silêncio e a paz desejada…. Nem preciso dizer que Nadinho era teimoso e continuou!
No final dos anos 1980, com o advento do cedê, migramos para a nova tecnologia, porém continuamos usando os elepês e as fitas-cassetes, tudo junto e misturado. Vivíamos divididos entre o velho e o novo.
Nos anos 1990, participou do programa BB-Educar - Programa de Alfabetização de Jovens e Adultos desenvolvido à luz dos preceitos pedagógicos de Paulo Freire, tendo alfabetizado milhares de pessoas desde sua criação. Fez parte das turmas do programa que funcionava na AABB sob o comando das funcionárias e professoras voluntárias Maria do Carmo e Maria Dionízio. No ano 2000, a coordenação do programa passou a ser de responsabilidade da Fundação Banco do Brasil, mesmo ano em que decidiu se aposentar, mas continuou exercendo a profissão de eletricista.
Por trás da sua cara sisuda, ele tinha um grande coração. Homão com coração de menino, do tamanho do mundo. Sua lembrança permanece viva entre nós. A força estranha e revolucionária da música continua nos movendo e inspirando no espaço-tempo. O tempo não para e no entanto ele nunca envelhece. O que mais nos conforta é que a vida é amiga da arte.
"Eu vi o menino correndo eu vi o tempo
Brincando ao redor do caminho daquele menino
Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei
O sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei
Eu vi a mulher preparando outra pessoa
O tempo não parou pr'eu olhar para aquela barriga
A vida é amiga da arte
É a parte que o sol me ensinou
O sol que atravessa essa estrada que nunca passou
Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto não posso parar
Por isso essa voz tamanha
Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista
O tempo não para e no entanto ele nunca envelhece
Aquele que conhece o jogo
Do fogo das coisas que são
É o sol
É a estrada
É o tempo
É o pé
E é o chão
Eu vi muitos homens brigando ouvi seus gritos
Estive no fundo de cada vontade encoberta
E a coisa mais certa de todas as coisas
Não vale um caminho sob o sol
E o sol sobre a estrada
É o sol sobre a estrada
É o sol
Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto não posso parar
Por isso essa voz tamanha"
Novembro, 2023
Para saber mais, leia:
Grande Nadinho, João Neto. Excelente lembrança. Muito bem lembrado
ResponderExcluirQue beleza essa crônica, João. Fez-me voltar 34 anos no túnel do tempo, quando, ainda antes de assumir em Santana, após ser transferido de Bom Conselho-PE, estava sentado junto ao birô de Lauro de Souza Paiva, então gerente da agência, quando o mesmo me apresentou a Nadinho, que estava de férias e passava pela agência na ocasião. Dali pra frente, durante os cinco anos de nossa convivência, pude constatar tudo que você tão bem explicitou no texto acima. Saudades daquele eterno menino grande.
ResponderExcluirBom dia Xará!
ResponderExcluirParabéns...Bela lembrança com características de homenagem ao saudoso Nadinho.
João Neto Oliveira
Bela homenagem ao nosso amigo e conterrâneo Nadinho, Xará!
ResponderExcluirParabéns!
😢😢😢😢Era do coração!!!
ResponderExcluirHomenagem justíssima e bem merecida. Um grande beijo NADINHO !!
👏👏👏👏 palmas para meu Vizinho Nadinho
ResponderExcluirÊita tempo malvado, que andando prá frente, só anda prá trás e depois desaparece !!!
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