Um grão de areia na imensidão

 







A despeito da nossa vontade, o tempo avança, não espera, não para, não volta, e talvez por isso mesmo, seja assunto de tanto valor, especialmente a partir do momento em que se percebe que boa parte da vida se foi para nunca mais e já não se pode dispor de todo o tempo do mundo. Os dias podem ser infindáveis, mas os anos, esses voam sem dó de quem quer que seja, nem daqueles que vivem intensamente e muito menos dos que se atrevem a perder tempo.

A expectativa da morte vive nos rondando, ora de um jeito, ora de outro. Ninguém escapa dessa angústia em algum momento. Não é de todo ruim! O ser humano, no alto da sua soberba, merece ser lembrado da sua finitude! Chegamos e partiremos deste mundo pelas mãos dos outros. Somente isso já deveria ser um pedagógico ensinamento para nos tornarmos mais cooperativos e solidários. Mas não! Chega-se a deduzir que a humanidade é uma quimera, viciada em transgressões em todas as suas formas, onde individualismo e egoísmo crescem a passos largos. Única espécie que destrói a própria raça.

Exceto os humanos, nenhum outro mamífero tem infância tão longa. Quando se é criança, carente de proteção e de autonomia, a gente teme pela morte dos pais, que são o nosso porto seguro, guiado pelo instinto de sobrevivência. E assim, nas demais fases da vida, seguimos ignorando ou fingindo desconhecer a única e indefectível certeza existencial - a morte -, embora tantas ocorrências pareçam-nos precoces, trágicas ou injustas, por assim dizer!

Quando criança, era um pavor pensar na possibilidade da morte da minha mãe. Embora sem saber ao certo o que isso poderia significar. No fundo, no fundo, eu me sentia vulnerável e dependente. Ela era o meu tudo. Pensar na sua ausência definitiva, causava-me temor atroz. Aos poucos, compreendemos que tudo na vida tem o mesmo ciclo comum: nasce, cresce, gera descendência e morre.

Não pretendo, com este texto, ratificar alguma competência incomum, longe disso. Exponho, apenas, algumas reflexões. A experiência real da morte é e continuará sendo dolorosa, pessoal e intransferível. O que posso afirmar é que visitar os cemitérios, por exemplo, não me provoca nenhuma ansiedade. Faz-me refletir na quietude silenciosa sobre o que somos e o que seremos, numa incomensurável biblioteca de histórias de vidas e de almas que nos irmanam.

Lembro da leitura do livro “O profeta”, do escritor libanês Khalil Gibran, ainda na adolescência, que me deixou uma reflexão duradoura: Dentre os vários ensinamentos, uma parábola trouxe o seguinte ponto de vista: Um sábio acompanhava reflexivo, um cortejo fúnebre de pessoa simples da sua cidade. O cemitério ficava numa colina e todos seguiram em silêncio. A proporção que o povo se aproximava do campo santo, a cidade se destacava à vista dos seguidores. Após concluído o ritual, o sábio olhou para a cidade e pensou consigo:

-Ali não é o lugar de todos! Em seguida, voltou seu olhar para o cemitério e também argumentou:

-Aqui também não é o lugar de todos!
-Onde fica, então, o lugar de todos?

Sem resposta, volveu seu olhar aos céus, talvez sonhando com um lugar que abrigasse todas as criaturas…

Para um tema tão inquietante cujos argumentos nos parecem escassos, só nos resta viver. Iremos passar, contudo ainda temos tempo para entender que é preciso que um dia se vá, pra que outro dia amanheça. Que o sol não se ponha continuamente sobre a nossa ignorância.



Outubro, 2023

Comentários

  1. Sensacional, isso mesmo, João Neto

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  2. Hayton Rocha30/10/2023, 07:06

    Que beleza! Por causa de um João que amanhece reflexivo, lembrei-me de outro João: “Penso que chega um momento na vida da gente em que o único dever é lutar ferozmente por introduzir, no tempo de cada dia, o máximo de eternidade.” (Guimarães Rosa).

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  3. Espetacular!!!!!!

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  4. Como diria Ledo Ivo :"O que sobra é a obra. O resto soçobra".
    Pois é, João, o temor da finitude ciclicamente vem nos assombrar para que, ao menos, não façamos pequena nossa pequena existência nesse grão de areia do universo em que habitamos temporariamente.

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  5. A humanidade precisa reconhecer. Deus! "Na Casa do meu Pai há muitas Moradas ". Jesus é o caminho, a verdade e a Vida ". O Espírito para quem ouve os Ensinamentos de Deus, voltará para ele. A morte é a transição.

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  6. Viver é ação, é verbo! Concordo plenamente, JN: "só nos resta viver".

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  7. Perfeito, parabéns !!!

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  8. João de Liô hoje amanheceu refletindo sobre o tempo..
    Essas reflexões sao boas e úteis para continuar caminhando aqui na terra até um dia..
    Valeu, Xará!

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  9. Muito bom. A cidade. O cidadão do infinito.

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