A ausência que seremos

 





A minha modesta rua foi a passarela de tanta gente expressiva e marcante, cada uma com as suas particularidades. Conhecê-las, ainda que ínfima parte e compartilhar breves momentos, ajuda-nos a completar a enigmática e indelével composição existencial de cada um de nós. Pessoas que foram se ausentando no lapso do tempo e quase nem percebemos. Como seremos lembrados?


Quando a manhã clareava e chegava a hora de comprar o pão nosso de cada dia, eu me via descendo a ladeira em direção à Mercearia e Bar de Erasmo que ficava a poucos metros de casa. Lá estava Lelé, sempre prestativo, gentil e discreto com seus óculos de fundo de garrafa que o obrigava a levantar à vista acima da armação como um professor paciente. Seus cabelos brancos eram as testemunhas de que o tempo revelava seus efeitos. Pessoa de bem, pacato e introspectivo. Não se casou, nem deixou descendência.

Zé Cirilo e Lelé. Acervo da família.
Zeloso, nos entregava os pães que ele nos vendia arrumados no formato triangular, envolto numa espécie de cinta de papel que os cobria somente a parte central. Ainda não eram oferecidas em sacolas de papel como hoje. Se fossem seis pães, três ficavam na base, dois na parte superior e um em cima. Raramente se ia à padaria porque se tinha nas mercearias e os carrinhos, hermeticamente fechados, que passavam porta a porta, oferecendo pão francês, criolo e até o pão doce jacaré da Padaria Royal. O vendedor circulava pressionando a buzina com toques duplos inconfundíveis, reforçado pelo canto dolente e monótono: - Ói o pãããooo!!!

O alinhamento dos pães talvez fosse mania de homem apaixonado por geografia, ciência que estuda os espaços geográficos, onde são estabelecidas as relações humanas. O fato é que era uma pessoa admirada pela comunidade e que nos faz falta, mesmo depois de tanto tempo de ausência. Guilhermino “Lelé”, Zé Cirilo, Jarina, Donatila e Florisbela são descendentes do casal Cirilo Vieira de Queiroz e Júlia Oliveira Queiroz.

Um dos seus principais hobbies era divulgar e explicar Geografia do Brasil e do Mundo popularizando seus conhecimentos nas rodas de conversas. Um dos lugares mais frequentados era a Mercearia de Seu Carrito, local predileto para as suas prédicas. Conhecimentos adquiridos em pouco mais de ano de frequência à escola formal da sua época.

Na infância viajava na delegação de almocreves com seu pai em direção a Quebrangulo e Viçosa para comprar aguardente de cana para revender. Talvez seu vício tenha iniciado nesse período, pois segundo seus familiares, era visto com sintomas de embriaguez. Com as hastes ocas das folhas de carrapateira, nome vulgar planta mamona, sugava escondido goles da cachaça das ancoretas nos lombos das mulas. A carrapateira se propaga com muita facilidade nos terrenos baldios e beira de estrada.

Apreciador do carteado, tinha umas observações curiosas: Ao ser derrotado numa rodada de baralho cuja jogada se usava o modal “Melé”, fazia o comparativo de que a junção das palavras Mané (Nome do sobrinho), mais Lelé, resultava em “Melé”, que seria motivo para ter sorte, mas não! Então dizia: - Meu Deus, por que será não tenho sorte com melé?

O sertanejo gosta de inventar jargão. Serve à descontração nas rodas de conversa. É uma linguagem comum entre um grupo de pessoas. Quando era encontrado por um dos membros, a saudação se iniciava diuturnamente com a expressão “cara lisa”, que ele finalizava com o vocábulo “safada”, com destaque nos momentos de embriaguez. Sarcástico, se houvesse algum político próximo, com cinismo redirecionava o olhar aos parceiros e arrematava: - Esse aí éééé!!!!… A risada era geral. Somente o grupo sabia do que se tratava.

Guilhermino Queiroz (Lelé). Acervo da família.
Antes de assumir a condução dos negócios da Mercearia e Bar de Erasmo, seu sobrinho, Guilhermino foi sapateiro e vendedor de farinha que seu irmão Zé Cirilo trazia de Araripina. Entretanto, o vício etílico no horário de trabalho era constante, intercalado com ausências de recuperação, ainda que não perdesse a gentileza e educação, não eram situações aprovadas pela família e motivo frequente de preocupações.

De luz e mistério, lembranças no varal tremulam e são enxutas pelo vento. Feito tatuagem no corpo que não se apaga, marcas se tornam abstratas. Resumo que vaga pelo céu nevoento rumo ao infinito. Não, não é uma miragem! É o destino que se cumpre no silêncio do ser, longe das aparências e das esquinas. Nas entrelinhas da razão, cada um compõe a sua sinfonia com os arranjos, tempos e pausas na partitura da vida.



Outubro, 2023






Referências:
Entrevista com sobrinhos; Maria José O. Queiroz (Baé) e Manoel Oliveira Queiroz (Mané do Bode)

Comentários

  1. João, muito bem lembrado. Eu só o conheci, de nome...uma vez ou outra devo ter conversado com ele, já não lembro...estive algumas vezes no bar do Erasmo...a gente só falava sobre futebol...o irmão dele, só bebia numa caneca própria, com o nome do Vasco

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  2. Que crônica de uma beleza ímpar, João, a começar pelo título escolhido de forma perfeira (A ausência que seremos). O transcorrer do texto abrilhanta-se a cada parte construída e o parágrafo de fechamento é belíssimo, quando registra que "De luz e mistério, lembranças no varal tremulam e são enxutas pelo vento. Feito tatuagem no corpo que não se apaga, marcas se tornam abstratas. Resumo que vaga pelo céu nevoento rumo ao infinito". Bravo, João.
    Fernando Chagas

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  3. Lelé meu amigo , gostava de ouvir ele falando sobre geografia , sabia muito

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  4. Excelente João, lembro muito bem de Lelé . Era muito amigo de Papai.

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  5. Júlio César02/10/2023, 13:38

    Lembro muito de Lelé. Sabia todas as capitais de países. Atencioso com a freguesia. Com o tempo foi substituído por nosso amigo , seu sobrinho Erasmo. Bons tempos!

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  6. Ele era capaz de dizer quantos litros d'água tinha o Rio Nilo. Kkk

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  7. O comentário acima é meu: Paulo Décio.

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  8. Não lembro de ter o conhecido...
    Mas parabéns pela crônica, Xará.
    Os registros, da formam que são colocados, faze-nos viver aquela época e, até, colocar-se as senas do texto.
    João Neto Oliveira

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  9. Mais um resgate histórico de uma pessoa que fez parte da vida da maioria dos Santanenses mais velhos nos dias de hoje. Guilhermino Lelé era essa pessoa muito bem descrita por João de Liô.
    Parabéns Xará, por mais esse esse resgate

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  10. Fabio Campos. Como havia comentado noutro espaço virtual realmente uma belíssima página da literatura brasileira no espaço digital. O título remete-nos ao interior do escrito, ainda que co-participante, uma vez que conhecemos o protagonista. Vivenciando episódios aqui narrados.

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  11. Me fez lembrar de um senhor humilde, acredito que residia no alto do Tamanduá, passava todas as manhãs, com aquela voz inesquecível, “Ó o fubá de mi”. Lembranças que para as gerações atuais não tem significado. Alimentos, se tornaram industrializados, vendedores porta a porta se tornaram ambientes físicos…

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  12. Perfeita Crônica, amigo João Neto, quanta precisão ao relatar os fatos e nossa cultura ao longo do tempo, logo me veio a memória o Sr. Que passava vendendo Uiu. ( Mungunzá) e quebraqueixo quando não tinha as moedinhas trocava por garrafas. .

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