A vida me proporcionou experiências incríveis, muitas delas na instituição financeira em que trabalhei. Em 2013, com o intuito de diminuir a carência de médicos nos municípios do interior e nas periferias das grandes cidades do país, áreas prioritárias para o Sistema Único de Saúde - SUS, o Programa Mais Médicos foi lançado pelo Governo Federal numa parceria conjunta entre a OPAS/OMS-Organização Pan-Americana de Saúde e o Governo Cubano para designação de profissionais ao Brasil.
Na cidade interiorana onde eu trabalhava chegaram dois médicos cubanos que compareceram ao banco para dar prosseguimento na abertura de suas contas correntes, depois dos procedimentos iniciais em Brasília, quando foram recepcionados pelo Governo.
Antes, é necessário esclarecer que Cuba investe na saúde e isso se dá por motivos históricos. Com o fim da Revolução Cubana, o país enfrentou uma crise sanitária de níveis catastróficos. Toda a ilha tinha apenas 6 mil médicos, número insuficiente que precisava aumentar com urgência. Diante disso, o governo começou a investir na formação de médicos através do ensino de qualidade e gratuito.
Atualmente, a ilha conta com 75 mil médicos, uma média de um profissional para cada 160 habitantes, a maior taxa da América Latina. Ademais, alunos de outros países também aportam no país a fim de cursar uma das graduações mais concorridas do mundo. E como é a formação dos médicos em Cuba? Lá, o foco é humanizado, trabalhando em prol da prevenção e promoção de saúde.
Recebemos orientação para lhes dar a atenção necessária na conclusão dos procedimentos e lhes prestar o apoio necessário na utilização dos serviços bancários. Dar-lhes-ei os nomes fictícios de Olga e Juan, comuns no seu país. Cada interlocutor falava seu próprio idioma. Com calma era possível compreendê-los e se fazer compreendido.
O salário mensal de um médico em Cuba varia entre US$25 e US$41 (ou seja, não costuma ir além de R$200). Valor irrisório comparado com a realidade brasileira. No início do programa, o Ministério da Saúde transferia à Opas o valor de R$10.570,00. Os profissionais cubanos recebiam cerca de R$3 mil. O restante ficava com o governo cubano.
No primeiro encontro, após as boas-vindas, fiz questão de revelar minha admiração pela música cubana e os ritmos caribenhos, destacando que uma das canções mais bonitas era “Guantanamera” (Clique para assistir) e que o cantor, compositor e guitarrista Pablo Milanés (1943-2022) era muito conhecido no Brasil por causa da canção “Yolanda”, (Clique para assistir) gravada por Chico Buarque na década de 1970.
Não hesitei em perguntar: o que expressava o termo "Guantanamera”?. A doutora Olga esclareceu que era uma das músicas latinas mais conhecidas do mundo, mas a origem e o significado da composição eram incertos. Tratava-se de uma manifestação folclórica do povo que vivia nos campos da cidade de Guantánamo, onde fica a base naval dos Estados Unidos.
Desde que foi descoberta nos anos 1960, “Guantanamera” se tornou uma das músicas cubanas mais tocadas no mundo. Pesquisando, descobri que a composição instrumental é do músico José Fernández Diaz (1908-1979), o Joseíto, que integrava um sexteto em Havana. Já a letra, é livremente baseada nos Versos Sencillos (Versos Sensíveis, em tradução livre) do poeta cubano José Martí (1853-1895). Ele é reverenciado como um herói nacional devido à sua atuação como mártir na Independência de Cuba do domínio espanhol, ocorrida em 1898. Assim, a música é considerada uma canção de revolução e também de paz. De origem popular, foi ganhando inúmeras versões ao longo do tempo.
Os profissionais foram muito bem recebidos na comunidade e se adaptaram rapidamente. Inclusive, começaram a utilizar o aplicativo do banco nos celulares, visto que era bem simples os procedimentos para a transferência de recursos ao exterior. Depois de um ano, retornaram ao país para visitar os seus familiares.
Doutor Juan era solteiro. Estava feliz e me mostrou uma foto com seu pai e o carro que tinha comprado com as economias. Na verdade era um carro antigo, bem conservado da década de 1960. A Olga era casada e tinha deixado três filhos com o pai. A saudade de casa era um tormento, queixava-se!
Poucos dias depois chegou ao banco bastante estressada. O horário de atendimento já havia encerrado, mas autorizamos sua entrada. Ela veio rapidamente ao meu encontro. Estava pálida e agoniada. Eu não conseguia entender uma só palavra do que ela dizia. Estranho, porque não tínhamos grandes dificuldades na comunicação. Os diálogos tornaram-se confusos. Pedi que tivesse calma e falasse devagar para que eu entendesse. Foi preciso eu repetir algumas vezes para que se acalmasse e me falasse pausadamente. Felizmente, depois de tempo foi possível compreender o porquê do desespero e a razão era, segundo ela, o sumiço do dinheiro da sua conta!
Eu argumentei que era impossível os recursos simplesmente “sumirem” da conta. Ela justificava dizendo que estava tentando transferir recursos para Cuba e que não havia chegado lá, nem estava mais na conta. O que seria deles sem dinheiro para as despesas? Ela continuava muito agitada. Então, resolvemos revisar as últimas movimentações e elucidar o mistério: No lugar da transferência de recursos para o exterior, ela havia se equivocado e transferido o valor para a poupança. Ufa!! Rimos aliviados.
Não era pra menos, os R$3 mil reais significavam mais do que o valor de um ano de trabalho no país caribenho. Orientei-a na correção dos procedimentos e tudo se resolveu.
Após a solução, pensei comigo mesmo sobre um dos nossos ditados populares: “A parte mais sensível do ser humano é o bolso”, não importa a nacionalidade.
Dias depois, encontramo-nos em um almoço de confraternização de alguns professores e servidores da saúde conhecidos e lá estava a Olga. Rimos bastante da situação inusitada; a afobação dela e a minha dificuldade em compreendê-la. Coisas da vida! Acho que foi a última vez que a vi. Tomamos rumos diferentes.
Tempos depois, soube que o doutor Juan havia falecido, vítima de infarto fulminante. Confesso que foi um choque! Lamentei. Como a vida é cheia de surpresas e percalços. “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.
Agosto, 2023
Boa, João! Belo flagrante transformado em crônica do cotidiano, com “trilha sonora” da primeira!
ResponderExcluirIsso mesmo caro amigo cronista João Neto Felix "é a vida...é bonitaebonita!" Como diz a bela melodia do saudoso Gonzaguinha. E ler uma crônica assim recheada de seres humanos e o que cada um carrega é muito lindo. Parabéns ass Fabio Campos.
ResponderExcluirSensacional, João Neto.
ResponderExcluirMuito bom João, parabéns!
ResponderExcluirValter
Valeu João !
ResponderExcluir