Anoiteceu. A chuva fina persiste. É festa de São João e é hora de acender a fogueira, ainda que sob os pingos da chuva, o vento frio e escuridão da noite dominando os quatro cantos. De última hora, a madeira reciclada que guardei o ano inteiro está molhada. Tenho consciência de que terei mais trabalho, mas vou prosseguir assim mesmo.
Eu guardo em mim parte do mistério dos elementos, mesmo tendo água e terra no sangue, venero o ar que alimenta o fogaréu que retém em si a incandescência. Fico remoçando, tal qual o menino dos velhos São Joões, que sempre reaparece, sufocado na inconstância dos dias, sobrevivendo aos trancos e barrancos. Olhando-me de soslaio, sorri e estende a mão!
Enquanto trabalhava, fiquei pensando comigo mesmo querendo entender o mistério que nos move nas noites juninas brasileiras. É uma força estranha que nos impulsiona, que só pode ser a imanência ancestral que nos chama à preservação dos rituais; fogueira, fogos de artifício, comidas típicas e música tradicional que corre nas veias dos nordestinos.
Quando dei por mim, as labaredas ardiam intensamente e eu já havia me esquecido dos contratempos. Dentro da noite fria, tudo se iluminou e se aqueceu. Aos poucos, a estirpe dos Joões, amigos e encantados juntaram-se para saudar a voz daquele que clamou no deserto e que ainda ecoa. Mesmo que nada aconteça, tudo é tão bonito na festa de São João; Velhas cantigas, fogo que aquece, estouro de traques e rojões que despertam a transcendência de alegrias guardadas.
“ (...) E eu entro na roda
E canto as antigas cantigas
De amigo irmão
As canções de amanhecer
Lumiar e escuridão”*
O tempo urge e tudo passa tão rápido que nem nos damos conta. Viver é permanente travessia de intermináveis pontes que se interligam, finitamente suficiente para trilhar os caminhos existenciais e suas consequências inevitáveis, sem mágoas ou ressentimentos, mas infinitamente grato pelo privilégio de estar aqui pra ser e ver.
Lembranças de outrora que me invadem a despeito das minhas vontades, que me fazem retornar pelos caminhos da memória, segurando nas marcas invisíveis que deixei nas bermas do caminho para não me perder. Com os olhos lacrimejantes de tanta fumaça da vigília junina é preciso brindar e entregar aos herdeiros do futuro a certeza de que outros junhos virão igualmente intensos. Soltamos outro foguete estrelado e multicolorido que coloriu o céu escuro.
Na manhã seguinte, na paz do silêncio da cidade que ainda dormia, ainda havia calor no meio das cinzas. Um fio derradeiro de fumaça teimava em se levantar trôpego, levado a esmo pelo vento, exalando o aroma de madeira queimada.
Revirei as cinzas à procura de restos das brasas adormecidas e juntei uma a uma, unindo-as. Quanto mais eu espalhava as cinzas e juntava os carvões ardentes, mais o calor aumentava e, de repente, um ruído reacendeu o fogo. As fagulhas brilharam como ouro até consumir o que restava. Tudo se aquietou e encerrou o ciclo. De súbito, as cinzas se animaram formando o espectro da fênix que ganhou vida, bateu as asas e num impulso se elevou solenemente. Em voos rasantes, despediu-se, ganhou altura e reiniciou sua jornada entre o esplendor e a redenção de recomeçar numa festa de São João.
“ (...) De volta ao começo
E um sorriso de uma criança
De volta ao começo
Sorriso de uma pequena criança
Seja sempre seu brilho de vida”*
Nada me resta senão celebrar e soltar foguetes…
* De volta ao começo, Gonzaguinha. Clique para ouvir
Julho, 2023
Viajei pelo túnel do tempo, nos fragmentos da memória, para minha pequena terra natal, em busca dessas mesmas brasas e fumaça da minha infância. Bela crônica!
ResponderExcluirEssas fogueiras guardadas têm o condão de acordar e aquecer o que de melhor cochila dentro de nós. Parabéns, João, pela beleza de crônica.
ResponderExcluirSensacional, João Neto. Muito bom
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