Serra do Gonçalinho ou Micro-ondas, 2023 Foto: José Ronaldo |
Nos fins do século passado, enfrentava a vila de Santana do Ipanema uma das mais sérias crises econômicas. A seca de 1877 dizimara todo o sertão nordestino. Durante ela, havia o sertanejo comido até lagartixa assada. E, depois dela, a vida continuava difícil para todo mundo: para uns, porque nada tinham, para outros, porque o pouco que tinham era ameaçado de nova seca ou de roubo dos que nada possuíam. Já existiam mesmo sinais de uma investida faminta - começavam a surgir furtos de bodes aqui e acolá, intensificando-se, dia a dia, o desaparecimento de caprinos.
Laurentino era um negro pobre, casado e cheio de filhos. Sua casa era um rancho de palha de ouricuri, na margem direita do Ipanema, próximo à olaria que mais tijolos e telhas tem fabricado para os santanenses. Sem achar em que trabalhar, sem um tostão para alimentar a família, era intolerável ao negro ficar dentro de casa até ver a mulher e os filhos baquearem de fome. E Laurentino subia os morros, ia para o Goiabeira ou para o Gonçalinho, misturando-se aí com facheiros, mandacarus, espinheiros ou alastrados e galgando lajedos aonde somente bode poderia chegar.
Como em todas as vilas brasileiras, um pequeno grupo dirigente dos destinos de Santana fazia cumprir as leis que lhe convinham e ditava as que faltassem por complemento dos seus interesses. Desse grupo participava - e com algum destaque um Sr. Antonio Sabugo que, além do mais, era o Comissário de Polícia da vila.
Desfrutando uma situação econômica ainda respeitável, tinha o grupo dirigente de proteger-se de todos os possíveis contratempos. Surgiram os roubos de bode. Era o primeiro sinal de ameaça. E logo ficou decidida a caça ao ladrão ou ladrões.
Ao pensar naquela tarefa, teve o bom do Comissário imediatamente voltada a atenção para Laurentino e, sem dúvida, raciocinou: "Todo mundo está caindo de fome. Há famílias que já não saem de casa nem se levantam da esteira de piripiri. Mas os negrinhos do Laurentino ainda não caíram e andam de buchinhos cheios. O Laurentino não trabalha e vive nos serrotes. Conclusão: o bucho dos molequinhos está cheio de bode roubado". E nesse dia ficou traçada a sentença de Laurentino.
José Contente era desses soldados de polícia que espancam sorrindo (talvez viesse disso a alcunha de "Contente"), matam às gargalhadas e se revoltam quando alguém lhes censura a crueldade. E foi José Contente, no destacamento da vila, o melhor soldado que Sabugo encontrou para tão "arriscada" diligência.
Laurentino subia ou descia um lajedo, no Gonçalinho ou no Goiabeira, procurava livrar-se do espinho de quipá ou do ramo de rasga-beiço, quando viu a carabina apontada para o seu peito negro e cheio de molambos. Por trás da carabina, os olhos de Zé Contente. Escorregar pelos lajedos, meter-se no espinheiral, embrenhar-se na caatinga daquele morro ser-lhe-ia, a Laurentino, a única tábua de salvação. E ele saberia arriscar-se a fazer tudo isso, se ainda fosse um negro homem. Agora, porém, era um moleque fraco e faminto, restando-lhe somente a humildade, o apelo ao "bom coração" de quem o perseguisse. E começou a tremer.
Mãos para as costas, amarradas a couro cru, empurrado a coice de carabina, ora caindo, ora se levantando, lá ia ele, ser dizer onde estavam os bodes que havia roubado. As ameaças de Sabugo e as pancadas de Zé Contente não lhe arrancavam uma palavra de autocondenação. Chegados ao caminho, resolveram continuar o flagelo estrada a fora. Esperava Laurentino que o sofrimento diminuísse ao chegarem à cadeia; mas, essa esperança desapareceu quando ele viu irem para fora e não para dentro da vila. Andaram algumas cem braças, e o negro caiu com uma pancada mais forte. Teve, então, Zé Contente uma "grande ideia". Tirou o cinturão da calça do negro e, com ele, amarrou Laurentino ao tronco de uma caatingueira à direita do caminho. Sabugo riu daquela ideia genial e completou a tarefa: puxou de um grande punhal e resolveu retirar os bodes do bucho de Laurentino. Quando entrou a lâmina, o negro deu um gemido e ficou imóvel. Sabugo e Zé Contente foram embora a rir pela estrada em fora. O grupo estava livre do negro.
Mas Laurentino ainda não havia morrido. Foi encontrado por transeuntes, a cabeça inclinada sobre o peito, o punhal enfiado na barriga.
À cadeia da vila chegava o povo aos magotes para ver o esfaqueado. Chorava a negra e choravam os negrinhos perto da esteira de piripiri onde Laurentino gemia e contava a história aos pouquinhos.
- Eu nunca roubei na minha vida. Fais muito tempo queu num como carne de bicho nenhum, quanto mais de bode. O queu ia vê no serrote era alastrado pra cumê os miolo mais a muié e os menino.
E, com o esforço que fazia, saíam mesmo do ventre furado de Laurentino pedaços de alastrado juntos com frutas de facheiro ou mandacaru.
O negro morreu. Resta em seu lugar apenas a santa-cruz. E, quando os mais velhos santanenses passam pelo *Cipó, evocam não Laurentino, mas o triste apelido de um defunto: Bucho de Alastrado.
Santana do Ipanema, maior município alagoano.
Área cruzada de caminhos, caminhos cheios de cruzes.
Cada estrada, uma história; cada história uma página de sangue.
Cercada de cruzes Santana do Ipanema.
Cruzes no Bebedouro e Maniçoba, cruzes na Camonga, na Camoxinga ou nas
Tocaias, cruzes na estrada para Pão de Açúcar.
Santana do Ipanema - terra de Santa, terra de estradas, terra de histórias, terra de cruzes. (SILVA, 1ª edição, 1953, 2ª edição, 1990. p.116)
Oscar Silva
*Cipó, zona rural nas imediações da Sementeira.
Para saber mais, leia a matéria publicada pelo professor Clerisvaldo Braga das Chagas, no blog www.clerisvaldobchagas.blogospot.com, clique
Para saber mais sobre o autor, clique
Êita, João de Liô, que crônica comovente essa de Oscar Silva..Não conhecia..
ResponderExcluirParabéns pela reprodução da mesma..
Poxa João. Que Artigo Edificante... fiquei maravilhado.em absorvemos para melhores conhecimentos
ResponderExcluir