Inté, de Ulisses de França Braga

 

Foto: José Ronaldo


Ao final da primeira metade sessentista, aportei na hospitaleira Santana do Ipanema, no sertão das Alagoas, rica em história e em cultura.

Repleto de ímpetos desbravadores e da arrogância natural da juventude, logo me lancei ao reconhecimento da cidade, da região e, claro, de suas gentes, que sempre mereceram o meu mais sincero interesse. Foi assim que, além do amor que paulatinamente desenvolvi por aquela urbe, vim a constituir colendo grupo de companheiros. Terminamos, quase todos, atados pelos imperecedouros laços da amizade.

Dois ou três meses depois, ainda tateando em nomes e feições — péssimo fisionomista que sou —, em um dos costumeiros encontros fimdesemanescos que promovíamos no nosso aprazível clube, vim a conhecer uma pessoa que logo se tornaria um fraterno amigo. Chamava-se José Peixoto Noya, descendente, por parte de sua mãe Marinita, do Marechal Floriano Peixoto, aspecto, aliás, do qual jamais se vangloriou. O pai, Darras Noya, figura ímpar, chamava-o simplesmente José. Nós, Zé Neto.

Com a chegada do século XXI, alguém resolveu cognominá-lo “Barão”. Até hoje não consigo atinar com o porquê, já que não era, de modo algum, dado a fidalguias que tais.

Em inúmeras ocasiões, desde então, estivemos juntos. Ora jogando conversas e causos fora; ora analisando e propondo soluções para os mais graves problemas da cidade, do município, de Alagoas, do Brasil e — às vezes exagerávamos — até mesmo do mundo. Em outras oportunidades promovíamos tertúlias inesquecíveis, junto com amigos de pendores artísticos, que tocavam instrumentos de cordas ou mesmo piano.

Em uma dessas vezes, o grupo era formado por umas seis pessoas. Por volta das 23 horas apenas conversávamos alegremente, fomentados por algumas cervejas. Pedaços de galinha otimamente guisada e farofa nos garantiam o tira-gosto. Ah! Um molho de pimenta malagueta também estava por lá, desafiando os mais afoitos.

Foi então que um cidadão, vindo de um posto de gasolina vizinho, adentrou calmamente o portão do clube. Olhando-o de onde estávamos, somente reconhecíamos o volume que trazia sob o braço: um violão. Ora, qualquer vivente com um passaporte como esse era muito bem-vindo àquelas alturas.

Somente quando o visitante se aproximou é que o reconhecemos. Para nossa estupefação, tratava-se de Altemar Dutra, artista dos mais festejados na época, ainda hoje muito lembrado por nós, e cuja morte prematura foi tão lamentada.


Monumento a Altemar Dutra em Piranhas
Foto: redes sociais

Com um sonoro “boa noite” e um sorriso nos lábios, ele esclareceu que estava viajando sozinho para Piranhas, cidade às margens do Rio São Francisco. O carro tinha apresentado aquecimento anormal, com vazamento de água em um mangote do radiador. Avistando um posto de gasolina na entrada da cidade, resolveu parar. Mas o posto estava fechado, como era normal naqueles tempos, por conta das políticas públicas de contenção do consumo de gasolina, então vigente. Ouvindo, no prédio ao lado, a vozearia e os sons corriqueiros de copos e garrafas, entre outros, resolveu ir até lá para tentar encontrar auxílio.

Com algum alvoroço, nos movimentamos. Chamamos um rapaz que dormitava encostado ao balcão onde, vez por outra, funcionava como garçom. Foi imediatamente enviado em busca de conhecido mecânico. Enquanto isso, as conversas se tornaram ainda mais animadas, com a excitação da nova presença. Logo, já com um copo de cerveja diante de si, o recém-chegado deu pequenos retoques na afinação do “pinho” e encetou uma das suas apreciadas canções, para nosso deleite.

A despeito do adiantado da hora, o mecânico foi trazido e o mangote comprado e substituído. Tudo ficou acertado e uma generosa gorjeta para o nosso mensageiro foi efetivada. Mesmo assim, nossa seresta continuou, até que, lá pelas três da madrugada, Altemar resolveu prosseguir sua viagem, apesar dos nossos protestos. Insistíamos em que dormisse em nosso melhor hotel, mas de nada adiantou. Ele foi embora, afortunadamente sem maiores consequências.

Enfim, a convivência com Zé Neto, por mais de cinquenta anos, foi sempre entremeada dos mais diferentes eventos, ora engraçados, ora tristes, a exemplo da própria vida. Eventualmente fomos protagonistas de aventuras diversas, algumas jocosas, outras que chegavam quase a zaragatas. Umas poucas vieram a se transformar em crônicas, incluídas no livro “O Marechal que virou Major”, lançado por ele em 23/07/2011.

No início dos anos 70 nos tornamos radioamadores, eu com o prefixo PY7BNZ (depois PP7BNZ) e ele PY7CAR (depois PP7CAR). Em 25 de junho último seus filamentos se apagaram. Para nossa tristeza e saudade, operou um QRT em caráter definitivo. Nossos QSO futuros deverão acontecer em outras QRG.

Nesta sua derradeira empreitada não estive presente, já que, de tão súbita, a todos surpreendeu. Talvez seguindo o exemplo de seu pai, Darras, não perdeu muito tempo com formalidades médicas. Em pouco tempo estava, plácido, navegando rumo a outras plagas, para reencontros felizes e novas experiências.

Afável, generoso, arguto e vivaz, sua agradável presença faz falta a todos, familiares ou não. Por tudo isto, somente resta uma coisa que quero dizer, “ex corde”, ao meu fraternal amigo Zé Neto:


— Inté!

Ulisses F. Braga
Maceió (AL) – Agosto/2015

Saiba mais sobre Ulisses de França Braga (clique aqui)


P.S. - Nossos agradecimentos ao amigo Tonho Cupim pela cessão da crônica para publicação.

Comentários

  1. Que texto lindo, João! Fiz uma matéria com Zé Neto para o Ensaio Geral do CadaMinuto, onde fui editora de cultura nesse blog. Uma figura, Zé Neto! Amei o texto. Goretti Brandão

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    1. "...E o rio de asfalto e gente
      Entorna pelas ladeiras
      Entope o meio-fio
      Esquina mais de um milhão
      Quero ver então a gente, gente
      Gente, gente, gente, gente, gente..."

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  2. Hayton Rocha19/06/2023, 08:36

    Vai ver meu inesquecível chefe Braguinha, a esta altura, está num canto de mesa proseando com seu amigo Zé Neto, ouvindo no céu o violão e a voz de Altemar.

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  3. Excelente!!!!!!

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  4. Imagino a alegria de todos ao encontrar um grande artista, bebendo e cantando ali com eles.

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  5. Bela crônica!
    A forma como é descrita, faz nos sentirmos participe dos ocorridos.
    Parabéns
    João Neto Oliveira

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