Parte um: Ontem
Um rádio, um relógio e a canção foram a herança deixada por meu pai. Deficiente visual desde os seis anos de idade, como ele mesmo dizia, acostumou-se cedo a conviver com as limitações.
Contava que, ao emergir de um mergulho num riacho nas cercanias do distrito Sertãozinho de Baixo, as cores se dissiparam, ficando o escuro sem fim. Contudo, guardava consigo as lembranças e o encanto das cores do arco-íris.
Foi incansável na busca por autonomia e independência, num tempo em que os deficientes visuais eram reduzidos à insignificância, principalmente os pobres. Nunca se acomodou. Com criatividade, buscou incansavelmente seu lugar ao sol, mesmo sem educação formal, tornando-se músico, empreendedor da comunicação e prestador de serviços elétricos rurais.
Fez do rádio seu professor inseparável na busca por conhecimento, música e superação. Com a audição aguçada, desenvolveu rapidamente o dom musical, tornando-se multi-instrumentista.
Um dia, sem quê nem pra quê passando pelo comércio, comprei um violão Giannini na loja de variedades Cardoso Discos. Ao chegar em casa, todo contente pra contar ao velho da novidade, eu disse:
-Pai, comprei um violão!
-Ele disse: Ficou louco menino, sem saber tocar nada!
-Retruquei: O sinhô me ensina!
-Ele respondeu: Eu mesmo não…
Ainda ensaiamos a canção “A deusa da minha rua.” Nunca chegamos a cantar pra valer! Teria sido emocionante! Gerações que se entrelaçam. O bastão da vida que se passa adiante.
Ele era assim, meio rude e sagaz, como uma joia rara clamando pela lapidação das mãos de ourives. Entendo que a sua desconfiança quanto ao meu interesse musical foi a força que me motivou ao longo dos anos. Fiz de mim mesmo o professor.
Outra grande paixão eram os relógios mecânicos. O tempo lá em casa era fracionado em segundos. O tic tac e o badalar das horas foram o impulso suficiente para se superar, correr atrás dos sonhos e cuidar da família. Aprendi a gostar e a cuidar de relógios pelo seu exemplo. Em algumas das nossas conversas e com o agravamento das complicações da saúde, dizia:
- Quando eu morrer tome conta dos meus relógios...
Tivemos um sonho comum que não se concretizou: ter um piano! As limitações financeiras frustraram-nos. A vida é surpreendente! Seu Liô faleceu e não chegamos a vivenciar, mutuamente, a magia que a música pode proporcionar. No momento derradeiro fui protagonista das canções que embalaram sua despedida desde o funeral ao sepultamento.
Parte dois: Hoje (décadas depois)
Descerrou-se a cortina do tempo. Em nossa ignorância, muitas vezes não entendemos as lições da vida. Levamos décadas para decifrá-las. Quanto tempo é suficiente para se entender o que está a um palmo do nariz? O próprio tempo mostra o momento certo para se entender o que se precisa ser compreendido.
Tempo, tempo, tempo, não há saída além dos seus limites senão esperar pela sua benevolência, deixando que passe sutilmente, calmamente. Dê um tempo, e o acordo virá sem dissensão. Nos caminhos da composição do destino vamos recolhendo as marcas dos passos que ficaram para trás, reconstruindo as partes que formarão nossa melhor versão possível. Não lamente se for extemporâneo.
Corpo e consciência se aproximam, agora sem atalhos inúteis. Ouça sua voz nos desencontros. Distraído, caminhando pelas ruas, observe que gente vai e gente vem, cada um carregando seus segredos. É preciso estar atento à vida e às emoções; viver, correr perigo! Não são novas paisagens de que precisamos, mas novos olhares… Viver intensamente é o bastante!
Ah, a canção! Que seria de mim sem a canção, sem a música... Sons que se unem e nos levam às portas do céu flutuando como rimas pelo firmamento. Hei salvar a mim mesmo nesta confissão. No fim o que prevalecerá mesmo será a essência. “Há muito tempo que saí de casa. É tão bonito quando a gente sente que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá. É tão bonito quando a gente sente que nunca se está sozinho por mais que pense estar.”
Que maior herança pode alguém receber? Relógios? Rádios? Canções? Exemplos? Nos rádios e na comunicação; a expressão do conhecer e discernir. Das canções, a clarividência dos sentimentos! Do tempo que passa; a lição lenta e cruel de que o sofrimento é ausência de entendimento.
Piano, violões, rádios, relógios e os sinos dos ventos ainda soam por aqui. “A chama no meu peito ainda arde, nada foi em vão. Começaria tudo outra vez.” Hoje é domingo! Então, licença, preciso sair para dar corda aos relógios e ouvir outras canções que o tempo urge!
Junho, 2023
Amigo Joã! "Meio irmão ". Tivemos uma infância feliz. Adolescência, Juventude. Continuamos felizes. Família vizinha. Nossas Famílias. Base de tudo. Com tanta simplicidade. . Não faltou Amor abundante delas. João, e a Bateria de Caixa de Papelão, com um "cavaquinho do Sr.Liô"? Debaixo da Goiabeira do vosso quintal. Fazíamos sonhos musicais. Que vida linda. Nossas vidas. Deus seja sempre louvado em tudo. Obrigado Pai do Céu. Abraços do velho Amigo: Ailton Magalhães.
ResponderExcluirObrigado, amigo e irmão. Rapaz, era mesmo! Nem me lembrava desses detalhes!!
ExcluirTexto maravilhoso, João! Uma pungente declaração de amor a seu pai, vivo em você. Chego a imaginá-lo cantando para ele ouvir a canção “Quase um segundo”, de Herbert Vianna:
ResponderExcluir“…Eu queria ver no escuro do mundo /Onde está tudo o que você quer /Pra me transformar no que te agrada /No que me faça ver /Quais são as cores e as coisas/ Pra te prender?/ Eu tive um sonho ruim e acordei chorando /Por isso eu te liguei /Será que você ainda pensa em mim?”
Sensacional, João. Conheci seu pai. Eu não acreditava quando ele consertava o relógio da igreja...e jogava dominó...eu ficava boquiaberto...
ResponderExcluirDeixou-nos um legado de luta e superação!
ExcluirQue lindo artigo meu amigo João. Cheguei a conhecer seu saudoso forte equerido Pai. Forte abraço do Aleom
ResponderExcluirValeu amigo!! Obrigado!
ExcluirQue bela história, principalmente percebendo o carinho pelo seu pai, que mesmo com a limitação nunca deixou de ser exemplo. O texto nos convida a mudar a visão em relação ao mundo, direcionar nosso olhar e não perder a capacidade de se admirar, só assim conseguiremos viver com intensidade e paixões.
ResponderExcluirDisse muito bem. Obrigado!
ExcluirExcelente texto, João, carregado de sentimentos que permanecem vivos em você , moldando os seus passos, onde a ausência física do seu pai se faz sempre presente espiritualmente nessa sua caminhada
ResponderExcluirFernando, agradeço o comentário!
ExcluirJoão... Segunda tentativa: nunca consigo publicar um comentário...
ResponderExcluirJá deu certo!
ExcluirSeu texto é belíssimo. Na forma, nas mensagens que contem, na filosofia que permeia todo ele. Remete, instiga a uma saudade e, sempre, a reflexões acerca da vida. Parabéns, meu amigo!
ResponderExcluirGoretti, são valiosas as suas observações!
ExcluirExcelente fragmento da memória em forma de palavras sensíveis e inspiradoras. Parabéns João Neto, o tecido da História se costura assim: sensibilidade, lembrança,narrativa,compartilhamento. Um abraço Romero Azevêdo
ResponderExcluirObrigado Romero pelo seu comentário!
ExcluirMuito bem Xará!
ResponderExcluirParabéns...Belo texto...
Tive a oportunidade de conhecer o Sr Liô, quando ele ia, prá a Pedra D'água, instalar energia a motor na realização das festas do povoado e, da forma como voce coloca, fica mais viva, ainda, a memória.
João Neto Oliveira Melo
Xará, Grato pela lembrança. Recordo que ele ia as festas da Pedra Dágua, Quandú, Tapuio, Várzea de Dona Joana e do Povoado Jorge, dentre outras.
ExcluirLindo texto João!
ResponderExcluirParece até que vejo Seu Liô.
Durante a leitura me lembrei desta música...
"Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Entro num acordo contigo
Tempo, tempo, tempo, tempo"