Os últimos dias de um cão de rua

 




Por volta das 22 horas a pequena cadela Kalu cadela latiu com insistência. Era um sinal de que algo merecia atenção. Nada de anormal havia, apenas um cão de rua vacilava sem direção, parecendo desesperançado da vida.


No raiar do dia, quando o silêncio ainda reinava na terra dos homens, abri a porta para iniciar os serviços de jardinagem. Sob a marquise da entrada da garagem da casa do vizinho, um cãozinho de rua mestiço, de pelagem preta, olhou para mim assustado e desconsolado. Apesar da aparência descuidada, era um cachorro jovem. Era o mesmo de ontem. Trôpego, esfomeado e com medo, levantou-se e quase não conseguia se movimentar, sentindo o peso de sua dor pungente.



Titubeando, dirigiu-se a outras calçadas com receio de que meus gestos fossem para expulsá-lo dali. Quando verifiquei o local onde ele tinha passado a noite, percebi que tinha manchas de sangue no chão que evidenciaram ferimento, embora eu não soubesse da gravidade.


Enquanto isso, ele vagarosamente peregrinava entre as calçadas sob os olhares das pessoas que saíam das casas. Tentamos alimentá-lo, mas foi em vão. Quando parou em uma calçada, a dona da casa ia chegando e imediatamente nos interpelou para que o retirasse dali. Explicamos a situação, mas mesmo assim ela permaneceu irredutível. Tivemos que o levar para o passeio público.


Cuidadores foram contatados, mas já estavam ocupados com outros problemas da causa. Com a urgência da situação o levamos para clínica. O próximo desafio seria encontrar um lugar que o acolhesse no período de resguardo.


Fomos informados que o Negão, como o batizamos, tinha duas perfurações na região do pescoço que pareciam marcas de caninos de outros cães. Provavelmente as lesões foram resultados de disputas de território ou de alguma cadela no cio com animais mais fortes. Depois de dois dias de cuidados o transportamos para um abrigo de animais de rua. A despeito dos cuidados e cicatrização parcial dos ferimentos, continuou magro e sem disposição.


No meio semana seguinte, recebemos aviso do asilo de que não se alimentava direito e continuava triste. Quando lá chegamos, era perceptível que o seu estado era preocupante. Deitado, seu olhar transmitia uma tristeza infinita e quase não conseguia se levantar e, por isso mesmo, deveria retornar à clínica. Animou-se um pouco na viagem, tentando ficar de pé como se quisesse apreciar a paisagem rural, sentir o vento no focinho e esquecer os dias de agonia que vivera nos últimos tempos.


Como não conseguia andar, para chegar ao socorro levei-o nos braços pois já não tinha forças suficientes que o mantivesse de pé. Na madrugada seguinte o Negão se despediu da vida. Fomos informados pela manhã. Lamentamos e ficamos entristecidos com a morte do Negão, pois apesar dos esforços não conseguimos salvá-lo.


O consolo foi ouvir várias a canção "Diana", de Toninho Horta e Fernando Brant, composta em homenagem à cachorrinha de Brant que havia morrido, numa bela interpretação do grupo “Boca Livre”. (assista) Aprendemos muito mais sobre a transitoriedade da vida.  




“Clamor do cão de rua”



“Estou com o corpo cansado e sinto que meu fim se aproxima.

Talvez essa seja minha última noite nesse mundo.

Talvez minha partida seja embaixo de uma marquise com um último suspiro que me resta.

Sou grato pelo pão que encontrei no lixo e saciou minha fome e pela água da chuva que matou a minha sede.

Sou um dos muitos que nunca sentiu o calor de um lar e um abraço carinhoso.

Mas conheço, como ninguém, a dor de um chute no dorso, de uma pedrada na cabeça e dos pneus do carro me lançando para fora da pista.

Lembro-me da mão pesada que me abandonou na rua quando eu era ainda um filhote.

Fui obrigado a sobreviver com uma das piores dores, a da alma.

Percorri ruas e avenidas e nunca ninguém se interessou por mim.

Supliquei por atenção, mas não consegui.

Nunca tive um nome.

Sempre fui: "aquele vira-lata."

São tantas coisas que queria falar, mas já me sinto sem forças e cansado.

Se pudesse fazer um último pedido, seria que nenhuma mão humana abandonasse mais seres inocentes.

É muito triste sobreviver perambulando sem destino, estar sozinho e ser aquele vira-lata."

Deus, por favor, abrace-me, ao menos, nesse meu último momento, porque sou sua criatura.”


Fonte: Veterinária Marilda B.

Maio,2023

Comentários

  1. O abandono de cães é algo muito sério. Infelizmente, sem uma acolhida por parte do homem torna -se muito difícil a sobrevivência do animal doméstico na Selva de Pedra.

    Parabéns, Xará , por mais essa bandeira.

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  2. Muito bom! Lembrei-me da cachorra Baleia, da obra "Vidas Secas" (Graciliano Ramos), que, ferida de morte, desejou dormir. “Acordaria feliz, num mundo cheio de preás”.

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  3. E como tem cães abandonados, viu? Excelente crônica, parabéns

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  4. Muito bem Xará!
    Apesar de ser comum, o abandono de cães, diariamente, endidignamo-nos com a situação.
    Parabéns pela crônica e a forma cuidadosa com que você trata o assunto.
    João Neto Oliveira Melo

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