Naquele dia, o ponto de encontro dos meninos da rua depois do jantar foi defronte a casa de seu Jaime Costa. Todos se reuniam em volta do balaústre adornado de cobogós de cimento produzidos na fábrica de seu Zezito Tenório. O muro baixo tinha muitas utilidades: servia de banco para a maioria, outros se escanchavam e alguns desfilavam, como se fossem equilibristas das olimpíadas populares. Éramos protagonistas e espectadores de nós mesmos. O palco era o balaústre interativo. Era como se fosse uma ponte que conduzia os meninos aonde quisessem ir.
Conversa vai e conversa, indo de um lado para o outro, vi um sapo-cururu quieto num canto do jardim, entre as plantas. Fui lá reinar com o anfíbio e eis que mais rápido que o pensamento ele virou o traseiro pra mim e disparou um jato certeiro de urina nos meus olhos. Imediatamente senti-os arderem como pimenta. Pronto, o pânico se instalou e comecei a gritar:
-Vou ficar cego!!!! Vou ficar cego!!!! A meninada gritava e zombava de mim, dizendo:
-Vai ficar cego mesmo, viu!! Vai mexer com quem tá quieto!! Corre e vai lavar logo os olhos!!!!
Era o que se sabia dos sapos. Corri pra casa pra lavar o rosto, olhos e a cabeça toda. O coração batia tão forte que parecia que iria sair pela boca. A cegueira lá em casa era um tema sensível que acometera meu pai desde os seis anos de idade. Passamos muito tempo sem saber a causa real da doença. Décadas depois tomamos conhecimento de que tinha sido um irreversível acidente vascular cerebral no nervo óptico.
Naquele dia foi uma sensação terrível porque fui tomado pela estranha e cruel realidade da tiflose. Curioso é que meus pais tinham saído e eu tive que lidar com o problema sozinho. Depois da lavagem, fui revirar as gavetas de casa em busca de óculos em desuso para amenizar o trauma. Encontrei um modelo horrível, escuro e com uma armação antiquada, contudo, por precaução, passei a usá-los imediatamente.
Ao retornar à arena da meninada, a mangação só aumentou. Reconheço que os óculos eram feios, porém eram a minha garantia de que, pelo menos, poderiam aliviar o meu drama. Os meninos espantados diziam:
-O que é isso, hein???!!! Que presepada é essa, todos gargalhando!
-Ói, vá bulir com quem tá quieto! Será que você vai ficar cego mesmo???!!!
Os meninos foram implacáveis, mas fazer o quê ???!!!! A reação foi natural. Havia um mito de que a urina dos sapos quando em contato com a pele poderia resultar em uma alergia popularmente chamada de cobreiro. O que há de verdade é que os anuros podem urinar como mecanismo de defesa ao fugir, no entanto é inofensiva, não causa alergia e nem cegueira se em contato com os olhos.
Quando os sapos sentem-se ameaçados, eles liberam, através das glândulas localizadas atrás dos olhos, uma secreção venenosa que deixa a pele toda lubrificada. Quando agredido ou quando um cachorro abocanha-o, suas glândulas liberam o veneno no agressor. Geralmente o veneno possui toxinas que podem causar cegueira, vômitos, dores abdominais, convulsões e até mesmo a morte.
Antigamente se via com frequência os pequenos animais nas vias urbanas. Os bichos faziam parte das reinações dos meninos, merecendo até trilha sonora. Quem inventou a música sapo-cururu? Sua origem é creditada a uma mistura de tradições indígenas, europeias e africanas. A origem do termo “cururu” é envolta em controvérsia, sendo que alguns especialistas atribuem o nome a uma referência ao sapo-cururu, do qual a antiga dança associada ao canto seria uma imitação de seus saltos.
Na década de 1930, o maestro, compositor e professor carioca Heitor Villa-Lobos (1887-1959) dedicou parte de sua obra à educação musical infantil. Para tanto, viajou pelo Brasil recolhendo as canções folclóricas de domínio público das regiões, deixando relevante acervo gravado, mais de uma centena, dentre elas: Sapo-jururu (Ouça) e Terezinha de Jesus, coletânea de fundamental importância para a memória cultural brasileira.
No caso dos cururus, o canto é uma sequência de notas curtas e repetidas, percebida aos nossos ouvidos como um “cururu”, o que lhe rendeu seu nome popular, que se deriva do Tupi “Kuru'ru”. Reza a lenda que o sapo-cururu conhece a lua, encanta-se com a sua beleza e se apaixona por ela. Após ter o seu amor recusado, descobre o mistério que a envolve e, então, passa a ter um objetivo: acabar com a infelicidade de sua amada. Cururu, o sapo jururu tematiza o amor romântico e a solidariedade.
Sapo-jururu
Na beira do rio
Quando o sapo canta, ó maninha, é porque tem frio
A mulher do sapo
Deve estar lá dentro
Fazendo rendinha, ó maninha, para o casamento
Defensor dos sapos, já me acostumei a capturá-los retirando-os de situações de risco quando possível. Aliás, está cada vez mais raro encontrá-los nas cidades. Aqui, acolá encontramos apenas vestígios de animais esmagados pelos veículos. Grande parte da população repudia esses animais, embora sejam os grandes responsáveis pelo controle de pragas, insetos e até mesmo animais como os escorpiões. Um único sapo, por exemplo, pode se alimentar aos quilos de grande quantidade de insetos que se tornam abundantes nos períodos chuvosos.
Pesquisas dão conta de que cerca de 30% das espécies dos anuros estão ameaçadas de extinção, sendo que 35 tipos já desapareceram por completo desde 1980. As pessoas por desinformação muitas vezes jogam sal nos sapos, com a intenção de matá-los ou fazê-los ir embora de suas residências, mas isso é altamente tóxico para eles.
Os sapos estão sumindo. As tradições das cantigas de roda já foram extintas e também estão deixando de ser repassadas às novas gerações. O sinal de alerta está aceso, contudo eu jamais esquecerei da mira certeira dos bichos. Os muros baixos foram abolidos e substituídos pelos altos que só servem à reclusão.
Maio, 2023
Kkkkk que susto, hein? Mas é verdade, os sapos estão desaparecendo. São animais úteis, comem mosquitos. Muito bem lembrado
ResponderExcluirO susto foi grande. Nunca esqueci.
ExcluirLouvável sua atitude, João, de tornar-se um defensor dessa espécie que se tornou cada vez mais rara em nosso ambiente. O normal teria sido guardar algum trauma ou aversão, pelo susto que passou quando menino, mas você soube entender a razão pela qual o mecanismo de defesa dele foi acionado.
ResponderExcluirRapaz, menino é fogo...
ExcluirEra um cururu têi têi.
ResponderExcluirkkkk.
ExcluirRealmente João, eles eram muito presentes na nossa infância, e sua atitude em não guardar rancor é louvável.Parabéns!!!!!
ResponderExcluirA culpa foi minha. Eu que fui mexer com ele.
ExcluirPois é Xará! Sem a consciência de hoje, já capei muitos sapos (era o ato de colocar um pedaço de tábua sobre uma pequena torta de madeira, na forma de gangora) e, do lado mais baixo, colocávamos um Sapo e quando, com outro pedaço de pau, batíamos no lado mais alto da gangorra, o Sapo sobia, por metros e isso era uma festa...Que crueldade, da qual me arrependo mas, enfim... sabíamos pouco ou quase nada.
ResponderExcluirParabéns por mais esse registro cômico e esclarecedor...
João Neto Oliveira
Rapaz, não tem possa com menino. É fogo!
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