O tempo que o tempo tem…

 





O inverno no sertão é uma das estações mais esperadas. Tudo se transforma; o que parecia morto, ressurge. O carro serpenteava no meio da imensidão verde na descida da serra do Fundão em Água Branca exalando um delicioso perfume de mato verde. No céu, os urubus planavam preguiçosamente. Nos arames farpados da margem da estrada a passarada fazia festa na clareira do sol que aquecia todo ser vivente. Juremas repletas de miúdas espigas brancas perfumadas se juntavam às ipomeias e se emaranhavam no mandacaru à margem da rodovia.






Era a primeira vez que viajava naquela estrada do extremo oeste das Alagoas, em direção a Mata Grande, que detém em suas terras a Serra da Onça, ponto mais alto do Estado com 1.016 metros. Enquanto isso, meu pensamento vagava pelas paisagens até onde minha vista alcançava. Lembranças antigas também chegaram num segundo.




Há décadas eu era um estudante ginasial que fez parte da delegação esportiva do Colégio Estadual que fazia intercâmbio com os estudantes de Mata Grande. Cada aluno foi recepcionado e acolhido por uma família. Ainda hoje tenho boas lembranças da recepção que tivemos do povo mata-grandense.



Algum tempo depois, escrevi uma carta de agradecimento à anfitriã predizendo a possibilidade de nos tornar amigos, doravante. Em resposta, dentre outras coisas ela me respondeu:



- “Se você quer uma amiga, cativa-me!”.



Nem preciso dizer que o sentimento não prosperou. Eu era bem moço pra tanta filosofia, mas guardei aquela frase para reflexão. Anos mais tarde, entre uma leitura e outra deparei-me com uma descoberta: o clássico da literatura universal “O Pequeno Príncipe”, lançado em 1943, escrito pelo aviador e ilustrador francês Antoine de Saint-Exupèry que se encaixava no tema da antiga frase que eu conservava. A obra começa com a história de um menino de seis anos que queria ser pintor. É o segundo livro mais lido do mundo, só perde para a Bíblia. Tem até versão transposta para o braile, tornando-a acessível para os deficientes visuais.



A palavra chave da descoberta faz parte do diálogo entre o pequeno príncipe e uma raposa na terra dos homens:



“(...) Foi então que apareceu a raposa.

- Bom dia - disse a raposa.

- Bom dia - respondeu educadamente o pequeno príncipe, que se virou mas não viu nada.

- Estou aqui - disse a voz -, debaixo da macieira.

- Quem é você? - disse o pequeno príncipe. - Você é bem bonita...

- Sou uma raposa - disse a raposa.

- Venha brincar comigo - propôs o pequeno príncipe. Estou tão triste...

- Não posso brincar com você - disse a raposa. - Não fui cativada.

- Ah! Desculpe - fez o pequeno príncipe.

Mas, depois de uma reflexão, acrescentou: - O que significa "cativar"?

- Você não é daqui - disse a raposa. - O que você procura?

- Procuro os homens - disse o pequeno príncipe. - O que significa "cativar"?

- Os homens - disse a raposa - têm fuzis e caçam. É muito chato! Também criam galinhas. É só por isso que eles são interessantes. Você está procurando galinhas?

- Não - disse o pequeno príncipe. - Eu procuro amigos. O que significa "cativar"?

- É uma coisa por demais esquecida - disse a raposa - Significa "criar laços"...

- Criar laços?

- Exatamente - disse a raposa. -Você para mim ainda não passa de um menino muito parecido com cem mil meninos. E eu não preciso de você. E você também não precisa de mim. Sou para você apenas uma raposa parecida com cem mil raposas. Mas, se você me cativar, precisaremos um do outro. Você será para mim único no mundo. Eu serei para você única no mundo...

- Estou começando a entender - disse o pequeno príncipe. - Há uma flor... Acho que ela me cativou…




imagem:opequenoprincipebr



Infelizmente eu só pude compreender a frase da minha quase amiga, muito tempo depois. Porém, ficou o ensinamento! E por isso eu a agradeço mesmo assim. Retornar a Mata Grande é festejar a importância da amizade entre as pessoas.



Março, 2023

Comentários

  1. Sensacional 👏👏👏👏👏

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  2. Bela narrativa, João, tendo como suporte este clássico que já "cativou" milhões de leitores

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  3. Grande texto, João. Parabéns pela forma poética com que você tece reflexões sobre amizade, em meio à beleza da cena sertaneja.

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  4. Muito interessante!

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