De repente, nos damos conta de que algumas pessoas marcantes no cotidiano desaparecem. Todo lugar tem os seus personagens folclóricos; loucos, andarilhos e pedintes inveterados. É incrível como permanecem no inconsciente coletivo.
Maria dez mirréis era uma dessas pessoas. Há tempos que não a vejo. Nunca mais tive notícias. Por onde andará? Eu também andei por tantos caminhos, procurando meu lugar por aí!
Maria era uma sarará que vagueava pra cima e pra baixo pedindo a qualquer um o mesmo valor, choramingando e cantando ao mesmo tempo: “ - Me dê dez mil-réééééis” (dez mirréis). Seus interlocutores já sabiam como agir e pediam para que cantasse algo. Não sei dizer onde aprendeu aquele refrão. Deveria ser trecho de algum ritual de lazer ou trabalho de domínio público:
Assim cantava: - Subi no cajueiro pra tirar caju, menina bonitinha do vestido azul. E disparava em seguida: - Me dê dez mirrééééééis!!!! Com a sua voz aguda, afinada e arrastada, típica das carpideiras, lavadeiras de roupa no rio Ipanema, além das novenas.
Lembrou-me o professor Clerisvaldo que quando alguém negava seu pedido, dizia de pronto, diante das pessoas:
- Bicho covardo!!!
O termo “sarará” é como, no Brasil, são chamados os mestiços de brancos e negros cuja principal característica é a presença de cabelos crespos, loiros ou ruivos, e pele clara, bem como aos filhos de negros nascidos com albinismo, chamados especificamente de sarara miolo.
Maria trajava longos vestidos floridos de chita com babados, lenço no pescoço e um turbante ou coisa parecida para proteger a cabeça do sol causticante por causa de sua pele clara.
Real (plural,réis) foi o nome da unidade monetária utilizada no Brasil desde sua colonização até 1942, quando foi substituída pelo cruzeiro na razão de 1 cruzeiro por 1 mil-réis.
"Como essa unidade monetária não era fracionável (diferente do Real adotado em 1994, que se fraciona em centavos), o uso do termo réis, no plural, era predominante. Além disso, como essa unidade monetária circulou por um longo período de tempo em cédulas múltiplas de 1000, à época, tornou-se comum o uso do termo "mil-réis" (pronúncia "mirréis") como se fosse uma única palavra ou uma nova unidade monetária."
Como toda andarilha, não estava imune às provocações e brincadeiras de mau gosto dos transeuntes que a insultavam para testar seu humor e as respostas desaforadas. Conversando com o professor Marcelo Fausto ele me contou esse episódio:
Às vezes, propositalmente, era injuriada com a pergunta:
- Maria, tu vem do cabaré?
A resposta era no mesmo nível:
- Sua mãe, fi de rapariga!
Disse-me também que ela cantava trecho de canção de Roberto e Erasmo Carlos, “Todos estão Surdos”, de 1971:
-Meu amigo volte logo, venha ensinar meu povo lá, lá, lá, lá, lá…
A caricatura que traz os três personagens: Ivaldo(1948-), seu Bartolomeu Barros(1930-2022) e Maria dez mirréis foi pintado pelo artista visual, caricaturista e empresário de confecções esportivas Roberval Ribeiro que na década de 1990 viveu o auge das suas pinturas e desenhos tendo participado, inclusive, da I Feira de Arte e Cultura na AABB, em 1991. O quadro permanece exposto próximo à mesa de trabalho onde ficava o empresário Bartolomeu Barros, na "Casa O Ferrageiro" no centro da cidade.
Todo domingo, após a missa das sete, Maria estava de prontidão, no mesmo lugar com os seus trajes domingueiros, abordando os fiéis com a lucidez dos inquietos e incansáveis que seguem apenas o lenitivo de existir. Eu fazia questão de passar por onde ela estava para ouvir sua lamúria e cantoria.
Não a esquecemos. Você elevou nossa humanidade com música e humor, nos tornando mais gente. Retribuímos tão pouco… Talvez nunca mais nos encontremos mas permaneceremos entrelaçados nos fios da teia existencial que nos permitiu o encontro. "A vida é a arte do encontro, embora hajam tantos desencontros pela vida". (Vinícius de Moraes)
Março, 2023
Excelente texto amigo João!!
ResponderExcluirGrato, valeu!
ExcluirMuito bom a história de Maria , onde tive o prazer de conhecer e também mandar ela cantar aquele música kkkk
ResponderExcluirValeu amigo João
Era uma figura!!
ExcluirTexto muito bom, João. Ainda bem que existem escritores como você para perpetuar criaturas tão ricas na memória do povo quanto Maria. Parabéns!
ResponderExcluirPersonagem folclórica!
ExcluirMuito bom esse resgate da nossa história. Obrigada por nos fazer lembrar dessas pessoas que fazem parte da nossa vida. Me fez lembrar dos encontros com Ivaldo batendo palma , para vê-lo soltar o que estivesse na mão e bater palmas também .
ResponderExcluirSão tantas pessoas...
ExcluirEu tava, lá em Palmeira, fazendo feira, quando o avião passou ele passou em Santana de Canafístula, moça bonita seu namorado chegou…
ResponderExcluirEita, que agora a festa vai começar...
ExcluirBoa noite!
ResponderExcluirMuito bom Xará...Belo resgate...
Figuras folclóricas, apesar de eu só lembrar do Ivaldo e ter ouvido falar da Maria..
Parabéns pelo registro.
Um abraço
João Neto Oliveira
Valeu Xará!!!
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