Descendo pela ladeira da avenida Nossa Senhora de Lourdes, onde moramos, dei de cara com a floração estonteante e paralisante do ipê-amarelo da casa de Mileno Ferreira. Sexagenária, a árvore continua com o mesmo vigor dantes. A exuberante florada revestia-se de amarelo-ouro capaz de aguar os mais secos olhares de deslumbramento. A intensidade do brilho era tanta que irradiava tudo ao derredor.
Hipnotizado, fui tomado pelo esplendor cálido do amar-elo que me tomava. Fui atraído pela cascata de luz que me ofuscava. Calado e telepático, iniciei viagem cósmica numa velocidade estupenda atravessando horizontes repletos de alvoreceres e pores de sol; desertos que floresceram; tempestades e calmarias como se eu estivesse embrenhado nas linhas tortas do destino, recolhendo memórias adormecidas nos labirintos existenciais. Lembranças lancinantes me atingiam e me saravam. Então, percebi que estava me vendo na minha rua de tempos antigos.
De repente, tudo foi se desacelerando e os filetes de amar-elo me atingiam, limpando os cristalinos, reconstruindo paisagens e desfazendo os muros e seus ardis. Vejo-me caminhando a passos lentos junto dos meus, dos seus e dos nossos. Saudades se apresentavam sem pedir licença. Gente vem, gente vai e eu querendo ficar.
Olhando para o outro lado da rua dona Marina acena-me, sorridente, cuidando do roseiral e da touceira de cravos brancos. Mais adiante, vejo seu Diógenes, chegando em casa e com a sua voz mansa e serena cumprimentado quem por ali passava. Do outro lado da rua, as frondosas amendoeiras (castanholas) da casa de Zé Pinto carregadas de frutos temiam a chegada dos meninos.
Dona Mariinha, doçura de pessoa, que jamais a vi dizer um não a alguém, aparecia na calçada sorrindo. Dali mesmo eu ouvia dona Celina batendo nos baldes de leite que já eram distribuídos ao despertar do dia. Por alguma razão, fui levar uma encomenda na casa de dona Alice, mãe de seu Bartolomeu que me agradeceu sorrindo e me chamou de Joãozinho de Candeeiro sem que eu saiba o porquê!
Por alguns instantes andei por caminhos tão diferentes o suficiente para entender que fazemos parte de uma teia de acontecimentos. Do impacto da florada depreendo que não podemos fugir da verdade do amar-elo. Somos peregrinos numa jornada inacabada de autoconhecimento que nunca se conclui.
Retorno pelos caminhos do coração mais sereno da energia emanada das flores do fim de primavera. Catarse renovadora das coisas mais simples da vida em sintonia permanente com quem amamos ligados por um amar-elo invisível. Esperançoso, sigo confiante sem o peso da barra do tempo sobre os ombros. Flores, luzes e estrelas, quem me dera!
Dezembro, 2022
Bela crônica, João, num passeio pelas avenidas do tempo, onde vamos deixando pegadas e visualizando já tantas deixadas por tantos que se entrelaçaram em nossos caminhos.
ResponderExcluirValeu Fernando! Grato.
ExcluirSentimentos! Ainda bem que Pessoas especiais valorizam esse jeito de sentir a vida. Sentir o simples, o verdadeiro Amor. Saudades de tudo e de todos que passaram e passam por nós. A vida é linda. A vida é única. "É PRECISO SABER VIVER!"
ResponderExcluirSensacional, João Neto. Sensacional 👏👏👏👏👏👏👏
ExcluirBoa tarde!
ResponderExcluirMuito bom Xará...
O seu registro nos faz viver sem ter vivido...
Parabéns
João Neto Oliveira
Obrigado Xará leitura.
ExcluirSensacional, uma viagem e tanto ao passado. Bela crônica, João Neto
ResponderExcluirTodos nós, de alguma forma, viajamos de encontro às raízes. Valeu!
ExcluirE isso aí. A única diferença é que alguns relatam e outros, não!
ExcluirRecordar. Passar pelo coração outra vez. Valeu.
ResponderExcluirSem referências, somos um barco à deriva...
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