Doutor Arsênio Moreira

 


Santana do Ipanema, década de 1930

“Santana do Ipanema, solo sertanejo das Alagoas, cheio de sol causticante durante horas do dia, com tardes quentes e noites frescas por vida, visitada por trovoadas benfazejas.


Durante anos, vez por outra, passava por aqui um médico, e durante 48 horas, consultava uma infinidade de doentes. A maioria procurava os chamados curandeiros (feitores de garrafadas) em quem acreditavam piamente; e uma minoria procurava a farmácia do Sr. Coriolano, mais conhecido por “Carola”, homem prático e muito considerado.

Procedente de Viçosa, apareceu por aqui o Sr. Hermínio Tenório Barros, mais conhecido por “Moreninho”. Era prático de farmácia e enfermeiro. Atendia a todos e não cobrava caro. Faziam parte de sua experiência casos de facada, hemorragia, parto, feridas brabas, dor de estômago, de fígado, etc. Costumava manipular pomadas com as drogas do sertão. Dada a sua habilidade, fora contratado como enfermeiro do 2º Batalhão de Polícia Militar de Alagoas, aquartelado em nossa cidade, sob o comando do Coronel Lucena. Este, indo à cidade de Mata Grande, falou com o Dr. Arsênio Moreira da Silva, e o contratou para ser médico-chefe do batalhão com a patente de 1º Tenente da Força Policial.


Formatura aos 21 anos
Está claro que o enfermeiro passou a ser auxiliar de enfermagem por não possuir patente alguma. Esse ilustre médico baiano de Jequié, formado na Faculdade de Medicina da Bahia era também laboratorista, tanto assim que chegou a montar um laboratório para exames de fezes, sangue e urina. Fazia também pequenas cirurgias e partos. Aviava receitas e sua atuação na cidade foi enorme, uma vez que não dispúnhamos de nada disso. Quem podia viajar para a cidade próxima, que era Palmeira dos índios, onde tudo existia em ponto pequeno, poderia fazer exames e pequenas cirurgias, pois a cidade contava com três médicos, sendo um operador.

Era um homem de grande saber em sua especialidade, chegando a dominar em outras, pois lia muito e estava sempre pronto para atender ricos e pobres, pudessem pagar ou não. Trabalhou durante anos pela cidade e só fez amigos. O povo de nossa terra prestou-lhe uma homenagem imorredoura, dando-lhe o nome à rua principal do bairro do Monumento. É pertinente lembrar à atual juventude que naquele tempo o médico fazia a verdadeira medicina, quer examinando os pacientes, quer fazendo exames de laboratório, quer receitando fórmulas para serem aviadas nas farmácias. Nos tempos modernos, os médicos apenas receitam os medicamentos feitos pelos laboratórios, existentes nas prateleiras das farmácias.


Doutor Arsênio Moreira da Silva(1898-1950), natural de Alagoinhas, Bahia, filho de Laudelino Augusto da Silva e Herculana Moreira da Silva, chegou a Santana em meados dos anos trinta como médico do Segundo Batalhão de combate aos cangaceiros em todo o sertão de Alagoas.

Relata Luitgarde: Guardo desse personagem gratas lembranças, porque em 1946, perto dos cinco anos de idade, vivendo no Capim, distrito de Santana, fui acometida de grave doença, perdendo a capacidade de andar e até de falar, recebendo uma verdadeira romaria de visitantes que vinham benzer ou simplesmente rezar pela "menina de seu Júlio e dona Maria", já "mais pra lá do que pra cá", tão fraquinha que "ninguém dava mais nada por ela". Emudecida, porém lúcida, de olhos fechados escutava tudo que diziam, até que alguém aconselhou: "Dona Maria, se Deus foi servido, a bichinha já é "anjinho"! É melhor encomendar um caixãozinho!" Minha mãe, numa voz firme respondeu: Quarta feira levo ela para Dr. Arsênio que, com os poderes de Deus, vai salvar a vida da minha filha. Ele foi mandado por Nossa Senhora, compadecida das mães de família perdendo tantos filhos!

A longa viagem (30 km ou cinco léguas) foi planejada forrando-se um colchão no carro de boi para diminuir os solavancos na estrada esburacada, cheia de pedra e em alguns trechos tão estreita que o carreiro (Odilon Francelino) precisava cortar os galhos que se enganchavam na torda (no toldo) do carro, a golpes do facão afiado que trazia na cintura. Chamava os bois com muito cuidado, conduzindo o carro nas passagens cheias de pedra, procurando evitar "catabio". Cada choque da roda imensa, rodeada de ferro, era uma dor que eletrizava o corpo inteiro.

Depois da chegada na "Rua", no calçamento de lageiros (lagedos) onde o aro da roda do carro escorregava, e como diziam, tirava fogo enquanto o bem azeitado eixo gemia um som muito triste. Viajamos o dia inteiro do Capim para Santana.

Tudo arrumado, eu deitada na cama, chega o Doutor que iria me salvar. Era um homem jovem, branco de cabelo preto bem penteado, que se aproximou de mim rindo e disse que ia me examinar. Sem saber o que era aquilo, fiquei observando as mãos com muitos pelos pretos (era a primeira vez que eu via um homem tão peludo) se aproximarem de mim. Enquanto cobria minha barriga com a mão esquerda, com a outra dava petelecos na própria mão, de forma tão delicada, que tive todo o abdome apalpado, medido, avaliado, sem que eu sentisse qualquer toque, quanto mais dor! Auscultou-me, tirou a temperatura e fez perguntas à minha mãe.Calmamente e muito sério o médico pediu que mamãe trouxesse água quente numa bacia grande e água fria em outra.

Chegadas as bacias d'água, quase morri de vergonha, tamanha era a repressão familiar à exibição do corpo, quando o médico me tirou a camisola e passou a me mergulhar alternadamente na água quente e na fria. Eu tinha a sensação de verdadeiro choque quando era trocada de bacia, enquanto a chaleira não saia do fogão de labareda alta. Já suando, o Doutor deu por terminada a primeira sessão do tratamento. No dia seguinte ele trouxe um vidro com as duas pontas envergadas como cabos de guarda-chuva, um pedestal de ferro onde pendurou o tubo de vidro com uma mangueirinha e me espetou uma agulha na veia, informando que eu ia ficar um mês nos banhos, no soro, e depois ia sair pulando corda e falando pelos cotovelos. Graças a ele, estou aqui hoje contando esta história que, "entrando por uma perna de pato e saindo por uma perna de pinto", me dá vontade de contar mais trinta.

Dr. Arsênio revolucionou a vida do município! Morriam recém-nascidos como moscas, vítimas de gastrenterite, tosse braba (em Maceió soube que a doença se chamava coqueluche), sarampo, verminose, ferida de boca e furunculose. Uma vez que as estradas de rodagem eram poucas e precaríssimas, os pais levavam as crianças a pé, de carro de boi e a cavalo esperando que o "dotô" salvasse a vida dos filhos. Até de rede chegavam esfaqueados e todo tipo de doente para Dr. Arsênio "dar um jeito".

O clínico, de extrema amabilidade com os clientes, ensinava-lhes hábitos de higiene e, principalmente, o efeito do leite de vaca, dado até aos agonizantes, sobre as doenças intestinais, disseminando no sertão o conhecimento da homeopatia e o consumo de lactância, alimento infantil que diminuiu a mortalidade das crianças por gastroenterite. Orientou as mães ensinando-lhes a técnica caseira de refino do açúcar cristal, muito pesado para a digestão infantil. Sarjou panarícios, fez partos, extraiu dente, tratou dos verminóticos, ensinou a tratar de bicho de pé, e se tomou respeitado pela clientela.

O jovem médico deixou as moças solteiras em polvorosa, cheia de esperança cada uma, de se tornar a respeitada mulher do médico, sonho logo desfeito quando o recém-chegado comunicou aos pais de família ser um homem casado separado da esposa. A sinceridade do médico distanciou-o da vivência social das famílias, jogando-o para a vida privada na convivência com Maria Arsênio, moça pobre, semi-analfabeta e morena acaboclada, com a qual teve três filhos: Hélio, Rui e Eva, adorados pelos clientes dos povoados próximos ou distantes, que traziam os presentes mais originais para a família de Dr. Arsênio: do amarrado de feijão, mão de milho e capão gordo, até sagüis para brincarem com os "filhinhos do doutô”. Todo mundo chegava cheio de esperança, de gratidão ou de resignação na casa de fachada com escada alta na Rua das Verduras, perto da Matriz de Senhora Santana, onde ele vivia.


Casa onde morou Dr. Arsênio e família

Em 1947 doutor Arsênio nos visitou quando já vivíamos em Maceió, no período letivo. Naquele dia a casa da Rua Dias Cabral ficou arrumadíssima, toda a meninada com a roupa de festa, porque o doutor Arsênio vinha cear com a família no fim da tarde. Ansiosa para mostrar que já era grande, fiquei na porta vendo ele chegar de chapéu e um pacote na mão. Muito risonho, cumprimentou adultos e crianças com um aperto de mão, depois de ouvir meu grito doutor Arsênio chegou, complementando: - Eram vocês mesmos que eu estava procurando!!!

Aberto o pacote que me foi entregue, aprendi naquele dia o hábito delicado de os adultos levarem chocolate para as crianças das famílias que visitavam.

Quando anos depois soubemos de seu falecimento, muito pobre, sem significativo apoio do povo santanense, já guardávamos, e tenho até hoje como relíquia, um cartão que enviou a meus pais no dia 27.12.1949, agradecendo os votos pelas festas de fim de ano, e desejando um 1950 com muita ventura. Pela gentileza de Alberto Agra, meu diligente informante em Santana do Ipanema, soube que dr. Arsênio faleceu em São Paulo, em fevereiro de 1950.

O Segundo Batalhão, sediado em Santana do Ipanema, Monumento, que nos trouxe dr. Arsênio, marcou para sempre a história da cidade. "Moças de familia" se casaram com soldados, cabos e sargentos "desconhecidos do meio do mundo", misturando-se no parentesco fechadíssimo da população do município, casada num verdadeiro “quase incesto” tão forte era a aproximação, que só rivalizava com o Olho D’Água das Flores onde se falava que “nascia até gente estranha”, tão aparentados eram os casais, sendo quase irmãos.

Se as veredas endureciam debaixo da pisada dos cangaceiros que levavam o desespero às famílias sertanejas, os caminhos ficaram marcados pela caminhada e pelas marchas das volantes que partiam de Santana varando as estradas do sertão, sob o comando do sargento da polícia que, por mérito de guerra ao cangaço chegou a Coronel José Lucena Albuquerque Maranhão. Quando me entendi como gente, o Coronel Lucena era o homem mais respeitado, temido, odiado, procurado e votado do sertão de Alagoas. Deputado estadual mais votado do Estado se elegeu por Santana do Ipanema, não concluindo o mandato porque Maceió, a partir da lei que permitiu eleição para as prefeituras das capitais, quis também prestar sua homenagem ao filho de Viçosa que dedicara a vida ao combate ao banditismo no sertão. Lucena, primeiro prefeito eleito de Maceió, recebeu inesperada e consagradora votação da capital alagoana.

Na data magna de Santana do Ipanema, na procissão de Senhora Santana, o Padre Bulhões, embaixo do grande pálio carregado pelos homens importantes da cidade conduzindo os mastros, carregava em unção o cálice com o Santíssimo Sacramento. Segurando o primeiro mastro do pálio, com expressão de grande devoto, o Coronel Lucena protege o santo cortejo de braço dado com sua bonita mulher Jassy Brito. Como todos sabiam, o Coronel era separado de sua esposa, mãe de Wilson, e com quem se casara na igreja e no civil. A outra, mãe de Terezinha, o que seria na classificação familiar? Enquanto o casal Arsênio e Maria era interditado nas grandes cerimônias religiosas e familiares, o casal Lucena e Jassy presidia a abertura dos banquetes, das cerimônias oficiais e dava dignidade ao pálio que cobria o Santíssimo na procissão que desfilava pelas ruas, com Padre Bulhões distribuindo bênçãos aos pecadores.

Marcando tantas efemérides, o ano de 2010 registra a perda, para Santana do Ipanema, há 60 anos, de um dos seus maiores beneméritos”.

Pelo seu trabalho a Academia Santanense de Letras, Ciências e Artes o homenageou como patrono de uma das suas cadeiras.


*Luitgarde de Oliveira Cavalcanti Barros, Santana do Ipanema pelos caminhos da memória.



Dr. Arsênio com os filhos Eva e Hélio












Os cartões-postais fazem parte do acervo digital do editor. Foram enviados por Dr. Arsênio Moreira aos compadres Darras e Marinita P. Noya em 1948 quando já estava morando em São Paulo. Fica evidente que estava com problemas de saúde, inclusive manifestando o desejo de voltar a Santana do Ipanema. Não retornou. Faleceu em 1950.





Novembro, 2022


Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros nasceu em Santana do Ipanema (1941). Antropóloga, estudou o Primário, Ginasial e Científico em Maceió. No Rio de Janeiro se graduou em Fisioterapia (ABBR), Licenciatura e Bacharelado em Ciências Sociais (UFRJ). Mestre e Doutora em Ciências Sociais (PUC-SP); Pós-Doutora em Antropologia (UNICAMP); Pós-Doutora em Ciência da Literatura (UFRJ). Professora Adjunta da UERJ; Professora Adjunta aposentada da UFRJ. Atua como pesquisadora desde 1967. Autora de: “Juazeiro do Padre Cícero: A terra da mãe de Deus”; “A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no sertão”; “Arthur Ramos e As Dinâmicas Sociais de Seu Tempo”. Organizadora e Co-Organizadora de sete livros; com mais de 100 artigos e capítulos de livros publicados no Brasil e no exterior.





Fonte de referência:

Melo, José Marques de; Gaia, Rossana(organizadores, Sertão Glocal: um mar de ideias brota às margens do Ipanema, Edufal, Maceió, 2010.

Comentários

  1. Gratidão pelo evio.

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  2. BARTOLOMEU RODRIGUES21/11/2022, 07:45

    Sensacional, João Neto. Sensacional.

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    1. Valeu Bartô! Obrigado pela assiduidade nas leituras.

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  3. Mais um resgate histórico exemplar

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    1. Fernando, continuamos com o compromisso de divulgar a história santanense. Obrigado pela assiduidade nas leituras.

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  4. GorettI Brandão21/11/2022, 08:07

    João, texto sensacional! Conhecendo sempre mais sobre Santana do Ipanema, gente, ilustres e história. Seu trabalho é de suma importância para aqueles que buscam conhecimento sobre a cidade e seus filhos e moradores. Parabéns, João!

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    1. Goretti, continuamos firmes com o propósito de registrar a história santanense e seus personagens, sejam eles ilustres ou anônimos. Obrigado.

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  5. Boa noite Xará!
    É só reviver a história... Como é bom ficar sabendo de como muito coisa aconteceu... Só assim mantém a memória viva...
    Parabéns!
    João Neto Oliveira

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    1. Valeu Xará! Obrigado pela leitura e comentário.

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  6. Dr. Arsênio Moreira um anjo que pousou em Santana do Ipanema e praticou o bem sem olhar prá quem.
    Foi assim que vi no depoimento Luittigar Oliveira transcrito por João de Liô.
    Parabéns, Xará!!
    Esse seu resgate de pessoas e fatos que fizeram nosso história é simplesmente grandioso.

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    1. Xará do Mato, Dr. Arsênio foi uma das pessoas que mais serviu ao povo santanense. Obrigado pelo comentário.

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  7. Histórias como essa deveria estar nas escolas públicas, valeu meu João de seu Lio

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    1. Agradeço pela leitura e comentário.

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  8. Tenho a honra e grande satisfação de conhecer e tornar-me amigo de Seu Hélio, um dos filhos de dr. Arsênio Moreira. E que é tbm amigo de meu irmão Francisco Soares por quem pergunta todas as vezes que nos encontramos pelas ruas de nossa cidade ass Fabio Soares Campos

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    1. Caro confrade Fábio Campos, agradeço sua leitura e comentário.

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