Na minha juventude trabalhei em Santana do Ipanema. Residi, com minha mãe, na Av. Rio Branco, quase às margens do lendário Ipanema. Naquela cidade constituí muitos amigos e ainda hoje conservo as mesmas amizades. Era eu à época um adolescente que acabara de completar vinte e dois anos. Aos poucos fui me familiarizando com o povo ordeiro e amigo o que me fez, em pouco tempo, considerar-me quase um santanense.
Quando saía para o trabalho, no meio do trajeto, passava todos os dias pela porta da dona Hermínia, uma senhora que ainda conservava traços de beleza da mocidade, fidalga, bem alva, todavia o seu olhar aparentava todo o sofrimento que passava. Residia numa casa muito grande, bem edificada, no principal logradouro da cidade. Dois filhos viviam em sua companhia: Agissé e Poní.
O primeiro, mais velho, andejo, pouco parava em casa. Poní era o inverso do irmão, permanecia quase todo tempo, durante o dia, à porta, de cócoras, sentado nos calcanhares, o chapelão enterrado à cabeça, pouco saía a não ser até a farmácia do Alberto Agra, onde se demorava muito pouco. Os dois nasceram e continuaram com problemas mentais.
Dona Hermínia os aturava com o seu amor de mãe e a paciência que Deus lhe dera. Pessoas amigas aconselhavam-na que os internassem num hospício, mas ninguém melhor do que ela sabia que a doença era irreversível. Preferia o sofrimento, as noites mal dormidas, a vida sedentária que levava, a uma separação brusca assim.
O seu coração de mãe estava acima das amarguras, dos gritos de horror e da impaciência do Agissé o filho que mais a inquietava, o que mais lhe atormentava o espírito. Este lunático primava por andar mal vestido, barba por fazer, mordendo o indicador da mão direita, gritando pelas ruas que a patroa - assim chamava a sua mãe - não lhe dava o que comer. Este gesto de loucura praticava todos os dias. Tinha prazer de bradar com a força dos pulmões que sentia fome.
O casal Antides e Hermínia morava vizinho ao sobrado
Certa vez, estávamos a prosear, bebericando, no bar de Siloé, eu, Chico Mendes, Jaime Costa, Zé Constantino, Ávio Damasceno. quando apareceu o Agissé na sua lamúria, choramingando, dizendo que estava de barriga vazia. O Mesquita ouvindo aquela cantilena pungente, acreditou e pediu que lhe servissem uma refeição. Logo sentou-se à mesa, nervoso, desconfiado e, sedento, parecia devorar tudo o que estava à sua vista. Todavia, para surpresa de todos nós, quase não se alimentou de nada, deu uma desculpa tola, sem nexo, e saiu devagarinho, passos largos, olhando para trás.
Dona Hermínia aceitava tudo com muita prudência, heroicamente, carregando aquele fardo que lhe fora reservado pelo destino. Muitas vezes passava pela sua calçada e ouvia a gritaria, o quebra-quebra. Eram os dois que estavam trancados e queriam sair, e saíam; um andando pra lá e pra cá até a farmácia do Alberto e o outro nas suas caminhadas, falando de fome. Mesmo assim, quando a tormenta amenizava, comovido, eu cheguei a vê-la penteando-lhes os cabelos, passando as mãos nas suas barbas, afagando-os, beijando-os com aquela ternura que somente as mães tão bem sabem fazer.
Apesar da situação aflitiva em que estava mergulhada, a dona Hermínia nunca perdeu a fé que trazia consigo desde a juventude. Muitas vezes a vi saindo da matriz de Senhora Santana, toda vestida na sua indumentária de viúva, a mantilha ainda à cabeça e nas mãos o terço e o livro de orações. No dizer de Humberto de Campos "as mulheres quando sofrem assim e assim afrontam a dor, ficam acima da humanidade". Dona Hermínia encarava a dor humildemente, mas altiva, cheia de fé, generosa, sem nada a ninguém reclamar, aceitando conformada o seu calvário que somente com a morte teve fim.
Amaro da Rocha Guedes
Amaro nasceu em Quebrangulo em 16.10.1925, na rua do Rosário. Estudou no Grupo Escolar Desembargador Tenório, fez parte da turma pioneira. Cursou primeiro e segundo graus no Colégio Guido de Fontgaland e cursou Letras no Cesmac em Maceió. No final da década de 1940, trabalhou em Santana como fiscal de renda. Prestou concurso e foi aprovado como postalista dos Correios, cargo que exerceu até se aposentar.
Crônica publicada no extinto "Jornal de Alagoas" e integrante do livro
"Águas do Paraíba", de 2002.
Notas explicativas:
Dona Hermínia Rocha, irmã de Frederico Rocha(1895-1982) era parente do Cel. Manoel Rodrigues da Rocha (1857-1920). O casal Antides e Hermínia morava vizinho ao sobrado do coronel no centro da cidade. A infância de Breno Accioly (1921-1966), neto do coronel será marcada pela influência da loucura, inspirando sua obra.
Para conhecer mais sobre o casal Antides e Hermínia, clique aqui
Penitência dada para Santa Hermínia foi muito acima do normal..Uma mártire . Conheci Dona Hermínia e suas cruzes :Agissé, Pony e Bebé..
ResponderExcluirParabéns, Xará, pela reprodução da crônica.
Boa noite Xará!
ResponderExcluirNão os conheci ou não lembro...Aos meus 22 anos, passei maior parte do meu tempo em Maceió...
Mas, parabéns Xará... Agora é como já os conhecesse, tão belo foi o registro.
Abraço
João Neto Oliveira