Na década de 1970, a família de Zé Preto, vendedor de mangaio nas feiras livres, morava nas imediações da praça São Pedro. José Vicente da Silva (1914-2010), descendente de africanos, era conhecido mesmo como Seu Zé Preto. Longevo, viveu quase um século. Pessoa trabalhadora e religiosa com a esposa Ana Maria da Conceição, gerou grande família. Os Vicentes da Silva eram: Dionísio, Manoel, Maria de Lourdes, Miguel, Marinalva, Paulo (Nêgo Paulo) e José Vicente Filho (Zé Filho). Com exceção de Paulo e Marinalva, todos já faleceram.
Nego Paulo, craque de futebol, integrou praticamente todas as equipes de futebol do sertão, destacando-se Ipanema, Ipiranga, Independente, Remo e tantos outros. Jogou também nos times de Palmeira dos Índios e Paulo Afonso, na Bahia. Atacante, a potência do seu chute era sua marca pessoal. Zé Filho, na década de 1960, tinha sido meu colega de classe dos anos iniciais no Grupo Escolar Padre Francisco Correia.
Moravam na descida da principal estrada de acesso à cidade até 1969, construída pelo doutor Otávio Cabral na década de 1920 quando assumiu a direção dos trabalhos agropastoris do Ministério da Agricultura. A estrada fazia parte da infraestrutura integrada à Usina de Beneficiamento de Algodão na praça de São Pedro, sistema adutor de abastecimento d’água da indústria captado do Ipanema e a Sementeira, que era fazenda experimental de cultivares, que ficava à distância de 4 km. Atualmente o trecho é denominado rua São Paulo. A partir de 1970, com a construção da ponte interligando o centro ao bairro Domingos Acácio, o trecho perdeu a relevância.
Passagem molhada no rio
A estrada vicinal tinha uma ponte de leito molhado no rio Ipanema e se transformou em local bem frequentado pelas lavadeiras de roupa porque oferecia condições adequadas e a meninada vadiava nas margens tomando banhos ou pescando. Observando os arredores na margem direita do rio se destacava uma enorme rocha granítica com mais de 2 metros de altura e 1,5 metros de diâmetro fincada solitariamente no leito pedregoso, como guardiã das águas que alguns chamavam de pedra do cuscuz e outros, pedra do sapo. Era um ponto turístico natural admirado pelos ribeirinhos.
Pedra do Cuscuz
Conta-se que Seu Zé Preto tinha sido agraciado com uma botija, uma das razões do seu sucesso comercial. Diz-se a lenda que todo aquele que recebe uma botija tem que pagar penitência pela graça alcançada para continuar tendo prosperidade nos negócios. Então decidiu edificar um pequeno oratório no topo da imponente pedra do cuscuz, dedicando-o a São José. Para viabilizar seu projeto, demoliu parte da rocha, cobrindo-a rusticamente com alvenaria de pedra argamassada, incluindo uma pequena escadaria que dava acesso ao santuário. O resultado foi uma construção estranha e assimétrica.
Tratou também de providenciar uma gambiarra e instalou uma lâmpada. Na festa de inauguração do oratório não faltou vinho de jurubeba, banda de pífanos, ladainhas e cantilenas a São José. Em lugar deserto e sem nenhuma proteção nem é preciso dizer que pouco tempo depois, vândalos destruíram o nicho e sequestraram a imagem do santo para local incerto e não sabido. A força das enchentes temporárias danificaram-no ainda mais. Seu Zé Preto não desanimou e o reconstruiu diversas vezes até esmorecer de vez, abandonando-o.
O feirante, mesmo assim, tinha a consciência tranquila de que havia cumprido seu voto. O ciclo das cheias subsequentes deterioram-no ainda mais deixando apenas os resquícios do seu passado inglório. Restaram pedras sobre pedras contidas no espectro de memórias embaçadas.
Agosto, 2022
Beleza, João. Muito bem escrito
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