Prédio do meio da rua onde funcionava o Cine Ipanema |
No ano de 1949, o cinema e a modernidade finalmente chegaram a Santana do Ipanema pelas mãos de um de seus filhos, o ex-combatente da segunda guerra mundial José Francisco Filho, que lutou naquele conflito entre as nações ao lado dos conterrâneos Darci de Araújo Melo, Alberto Nepomuceno Agra, Vandir Brandão, João Aquino Silva, José Francisco dos Prazeres, Osório Nobre, Pedro Pacífico Filho, Pedro Alves da Silva e Sandoval Vieira Barros.
O primeiro contato de José Francisco Filho com a invenção dos franceses, irmãos Lumiére, foi na cidade de Santos, São Paulo, no ano de 1938. Com o espírito aventureiro que o caracterizava, pediu permissão ao pai e embarcou num caminhão para o litoral paulista a fim de se encontrar com um tio que morava na cidade portuária. Nessa época tinha acabado de completar 16 anos e foi lá em Santos onde entrou pela primeira vez num cinema. Aquela experiência única causou uma forte impressão no jovem sertanejo, num depoimento dado aos familiares disse que a primeira coisa que pensou diante da tela iluminada naquela distante Baixada Santista foi "ah, se meus conterrâneos também pudessem ver isso!". Onze anos depois, e uma guerra mundial pelo meio (guerra para a qual se alistou como voluntário), levaria para o desfrute dos conterrâneos o moderno, inigualável e maravilhoso mundo do cinema.”
Zé Francisco
Filho do mestre em ourivesaria José Francisco de Azevedo e Maria das Dores Pereira de Azevedo, Zé Francisco Filho era irmão de Maria do Amparo Pereira de Azevedo. Casado com a professora baiana Wanda Elizabeth Ferreira de Azevedo Filho ele era sobrinho, por parte de mãe, de Dona Clemência Pereira, a “madrinha Quelé”, que mantinha uma das primeiras pensões de Santana e tinha como hóspede o hoje quase mitológico coronel José Lucena Maranhão, segundo prefeito constitucional da cidade e primeiro deputado estadual representando Santana na Assembleia Legislativa do Estado no ano de 1950 (o coronel Lucena morreu em maio de 1955, licenciado do cargo de prefeito da capital Maceió para tratamento de saúde em Recife). Zé Filho era primo legítimo dos irmãos Raul e José Pereira Monteiro (da coletoria), filhos de Dona Ana Rosa, irmã de Dona Dorinha, sua mãe. Por parte do pai, Zé Filho era primo de Zé Azevedo, sobrinho de José Francisco.
Vamos abrir um parêntese para relatar um fato no mínimo curioso protagonizado pelo ourives José Francisco (pai). Na época em que os cangaceiros assombravam o sertão e ameaçavam invadir as cidades para saquear tudo, José protegeu seu patrimônio de forma criativa e inteligente: derreteu todo ouro e prata que tinha e transformou em grossos pregos que pregou nas paredes da casa e usava como cabide para chapéus, sobretudo, toalhas... Quando precisava do ouro ou da prata para confeccionar suas apreciadas alianças, correntes, pingentes e outras jóias feitas com muito esmero e arte, pegava um desses "pregos", derretia e usava.
José Francisco Filho conheceu a baiana de Salvador Wanda Elizabeth no Rio de Janeiro no dia do desfile dos pracinhas que retornavam vitoriosos dos campos de batalhas na Itália. Ela, que ainda não tinha completado 18 anos, morava com a tia Alice e o esposo (que eram hóspedes residentes do célebre hotel Copacabana Palace) e estudava num dos colégios da então Capital Federal.
Na manhã de 18.07.1945 foi com as colegas estudantes dar as boas vindas aos heroicos soldados brasileiros que desembarcavam no porto do Rio vindos da Europa. No desfile triunfal dos pracinhas na Avenida Rio Branco no centro da cidade tomado por mais de 800 mil pessoas (segundo crônica da época), ela viu o “cabo Filho”, airoso em seu traje de combate mas exausto pelos mais de 15 dias de viagem de navio do Velho Continente até o Brasil. Ele usava um legítimo óculos Ray-Ban - presente de um colega do exército americano - para esconder as olheiras provocadas pelas noites mal dormidas na travessia do Atlântico ostentando na face um vasto bigode negro, tornando-se imberbe anos depois. A jovem estudante soteropolitana não resistiu. Foi amor à primeira vista.
Depois de uma longa troca de cartas, casaram-se em 1948 e foram morar em Campina Grande PB, onde os esperava um tio de José por parte de mãe (o também santanense Francisco Alves Pereira) que era diretor geral da empresa multinacional Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro-Sanbra (hoje Bunge) e tinha uma vaga de trabalho para o sobrinho.
No final da década de 1940, depois do nascimento do primeiro filho Gilvan, resolveram morar em Santana onde ainda residiam os pais e a irmã de José. Ele tinha 28 anos, ela 22. Ao chegarem, Wanda logo assumiu o cargo de professora de geografia no recém-fundado Ginásio Santana, ele decidiu realizar o antigo sonho abrindo o primeiro cinema da cidade.
No mês de março de 1949, Zé Filho acomodou a esposa e o recém nascido na casa dos pais e partiu para Recife onde comprou o projetor de 16 milímetros e foi pessoalmente assinar o contrato de exibição na distribuidora de filmes RKO Radio Filmes, que ficava no Recife Antigo na rua Marquês de Olinda, 820. O primeiro contrato firmado pelo Cine Ipanema tinha a duração de 12 meses a partir de 1 de abril de 49 até 31 de março de 50. Pelo contrato seriam exibidos 4 filmes da RKO por mês num valor total de CR$ 13.780,09 (treze mil, setecentos e oitenta cruzeiros e nove centavos).
Zé Filho aproveitou essa primeira viagem para fechar outro contrato, dessa vez com a Paramount Films que ficava na mesma rua, número 290. Esse contrato foi renovado em janeiro de 1950 conforme atesta a carta abaixo:
Ainda em Recife, em março de 49, entrou no número 200 da Marquês de Olinda, endereço da Metro-Goldwyn-Mayer, a produtora do leão que ruge na abertura dos filmes, fechando um novo contrato de exibição.
Em todos os contratos uma observação: Via Férrea p/ Palmeira dos Índios - Alagoas, ponto final do ramal ferroviário que unia Pernambuco a Alagoas. Naquela época, grande parte da distribuição de filmes era feita via estrada de ferro.
Era uma empresa familiar, a irmã Maria do Amparo vendia os ingressos na bilheteria e guardava a renda da sessão numa caixa de charutos Talvis, o porteiro era o próprio José Filho, o cunhado Fernando, exímio desenhista, pintava e abria os letreiros nos cartazes que anunciavam os filmes do dia e os programados para serem exibidos em breve, Wilma, a cunhada adolescente, tinha 14 anos, auxiliava Amparo.
Quando José Francisco Filho decidiu levar o cinema para o seu querido sertão, escolheu o nome Ipanema para batizar a sala precursora que se inaugurava. Poderia ter sido Cine Santana (homenagem à padroeira) ou Cine São José (uma homenagem ao santo que dava nome ao pai e a ele mesmo), mas de tudo que existia na cidade que o viu nascer, das memórias afetivas que calavam fundo em sua alma, o que mais se aproximava do cinema era mesmo o mítico “Panema” (uma rima poética para cinema, e se trocar as duas primeiras sílabas por “ci”...); assim como a cachoeira de Mauro lá na Zona da Mata das Gerais, o célebre rio que nasce em Pernambuco e tem sua foz em Alagoas tinha “dinamismo, beleza e continuidade eterna”.
Eram duas sessões semanais, uma no sábado e a outra no domingo, sempre à noite. O cinema precursor, além das cadeiras disponíveis, franqueava aos espectadores o direito de levar seu próprio assento (cadeiras, bancos ou tamboretes), um costume comum em muitos cinemas da época como pôde ser visto numa cena do clássico “Cinema Paradiso” de Giuseppe Tornatore (1988). Quando o último espectador da noite adentrava no salão, José Filho apagava as luzes do salão do grande sobrado -hoje demolido- onde funcionava o Cine Ipanema e iniciava a sessão, operando ele mesmo o projetor de 16 milímetros americano, marca Thompson.
A partir daí começava na tela branca o desfile dos astros da chamada Sétima Arte, um espetáculo novo, diferente de tudo que já se tinha visto em termos de entretenimento na cidade, um jeito diferente de espiar a vida, de conhecer novos lugares sem precisar viajar, um sonho de olhos abertos. Tudo isso encantou a então pequena Santana que alçava um grande voo rumo à modernidade, nas asas da já consolidada” indústria cultural” (preconizada por Adorno e Horkheimer).
O filme inaugural do Cine Ipanema foi exibido no dia 3 de abril de 1949, um domingo. Em cartaz, "Justiça Vingadora", um western (ou faroeste) estrelado por Tim Holt. Antes do filme principal foi exibido um "short" (curta metragem que complementava as sessões de cinema), intitulado "Viva México", episódio da série "Assim é a América", produzida pela RKO Radio Filmes.
No final do ano de 1951 o projetor americano marca Thompson do Cine Ipanema foi desligado pela última vez. A tela retangular branca do salão no primeiro andar do sobrado neoclássico foi removida. Restaram as paredes, testemunhas mudas de uma época de sonhos, alegria, algazarra, emoção, compartilhamento. No espaço vazio do velho Cine Ipanema ficou apenas a lembrança dos heróis de luz e sombras que um dia povoaram o imaginário mitológico de uma cidade que dava os seus primeiros passos no caminho da Idade Moderna, guiados pela lanterna mágica da Sétima Arte. O Cine Ipanema teve uma curta existência, mas o suficiente para deixar a indelével marca do pioneirismo, do marco inaugural de uma atividade de lazer cultural coletivo, de acesso democrático, sem diferenças, uma janela para ver o mundo a partir de Santana mesmo, sem necessidade de viajar fisicamente, apenas viajar nas asas da imaginação, do sonho, do encantamento.
O registro da história do Cine Ipanema é uma prova inconteste da presença da cultura, em seu formato industrial, na vida social de Santana do Ipanema na segunda metade do século XX. É um passado pelo qual podemos nos vangloriar sem nenhuma hesitação, é uma marca inapagável do pioneirismo tecnológico, artístico e cultural nesta terra. Muitas vezes temos a tendência de só perceber a importância dos fatos históricos no “outro” e ignoramos a nossa participação na construção dessa história. É um equívoco.
Rememorar os acontecimentos pretéritos e extrair deles o seu efetivo valor para a formação da consciência coletiva no presente é tarefa de todos aqueles que, como nós, amam a História e procuram fazer justiça aos nomes que a escrevem.
Santana do Ipanema teve um importante passado no campo cultural, desvendá-lo para as gerações de hoje foi a forma que encontramos para encorajá-los e incentivá-los a prosseguir firmes nesta área, não só como consumidores de produtos culturais, mas sobretudo como produtores de arte e cultura na Capital do Sertão das Alagoas.
O sobrado do meio da rua foi demolido no ano de 1961, na gestão do prefeito Ulisses Silva, dez anos depois do fechamento do Cine Ipanema. O pioneiro cinema de Zé Filho abriu caminho para o Cine Glória e, posteriormente, o Cine Alvorada.
O casal, José e Wanda, voltou para Campina Grande onde teve mais 5 filhos (os gêmeos Rômulo e Romero, Sílvio (que faleceu prematuramente ainda bebê), Elizabeth e Danuza).
Agosto, 2022
O casal Zé Filho e Wanda em 1978
Pesquisa/texto/Produção: Romero Azevedo
(Jornalista, Professor Aposentado da UFCG, filho de Zé Francisco)
Reprodução das ilustrações e documentos: Marcus Azevedo
(Major da PM da Paraíba, neto de Zé Filho)
Design do blog: Caio Márcio (Web Designer e Programador)
Revisão: Rafael Azevedo(Engenheiro de Pesca; Servidor Público da Procuradoria Geral da República em Brasília, neto de Zé Filho
Excelente registro histórico
ResponderExcluirSensacional, João Neto. Lembrei quando ia ao Cine Alvorada, no meu tempo de criança. Ainda hoje gosto de um bom filme.
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