Não há dúvidas de que o maior legado da cultura santanense é a religiosidade, fruto da ação evangelizadora do missionário apostólico Padre Francisco Correia a partir do século XVIII e os seus sucessores na Ribeira do Panema, habitada basicamente pelos índios Fulni-ô, antes da chegada dos fazendeiros. Sem a preservação da história seremos peregrinos caminhando sem saber para onde…
A capela de São João Batista do bairro Bebedouro, subúrbio de Santana do Ipanema foi construída, provavelmente em 1918, pelo artesão de chapéu de couro de bode, religioso e festeiro do bairro, senhor João Lourenço, como penitência e promessa pelo fim da gripe espanhola que matou milhares de pessoas no Brasil e no mundo no período da primeira grande guerra mundial.
Na década de 1970 constatamos “in loco” vários tanques de curtimento de couro no bairro. Desde o final do século XIX e início do século XX que a região se destacava como polo produtor de couros e peles que eram vendidos para outras regiões e até para o exterior, contribuindo muito para o desenvolvimento econômico da cidade.
Não há dúvidas de que o templo foi construído por mestre de obras experiente pelos critérios dos detalhes aplicados, com predominância da horizontalidade. Não está descartada a hipótese de que o primeiro engenheiro civil da Vila, Joaquim Ferreira da Silva, pai de Mileno Ferreira(1925-1988), tenha participado da empreitada. Ele foi o engenheiro do casarão da esquina no centro da cidade entre 1918 e 1920. Era um homem viajado e com ideias progressistas. A fachada da sua casa, na rua Coronel Lucena, é um exemplo evidente. Nenhuma outra capela da região tinha tantos ornamentos na fachada.
A harmonia de suas linhas causava admiração pela grandiosidade, levando em conta sua distância do centro urbano numa localização cujos moradores eram, em sua maioria, constituída de pequenos ruralistas. Sua nave central era sustentada por três pilastras de cada lado, unidas por arcos côncavos contínuos, incluindo duas alas colaterais. O telhado era composto de sistema de vigas estruturais treliçadas de madeira - tipo “tesouras” -, com caibros, ripas e telhas coloniais de barro.
Os traços arquitetônicos do prédio com suas colunas lembravam e muito a Matriz de Senhora Santana antes do desabamento em 1982. Sua frente continha três portas de acesso, sendo a porta central de maior tamanho. Acima delas, quatro janelas arqueadas no formato ogival adornavam o exterior, proporcionando iluminação natural no seu interior.
No penúltimo estágio da fachada, o beiral se destacava com detalhes em linhas retas que incluíam frisos do tipo eira, beira e tribeira. Nas extremidades, uma em cada lado, duas pilastras com ponteiras agulhadas conferiam a tradição herdada dos castelos medievais.
No último estágio, destacando-se no frontispício, uma parede triangular emoldurada de diversos arabescos e adornos geométricos em alto relevo, lembravam uma coroa. Na face central um ornato de ramagens, linhas entrelaçadas, rabiscos e flores compunham o conjunto harmônico que simbolizava a joia preciosa da espiritualidade. No ponto extremo, uma pequena cruz de ferro exibia contornos metálicos esplendorosos que simbolizavam a glória do Cristo Crucificado.
Procissões noturnas saíam da igreja em direção à matriz de Senhora Santana, bem iluminadas com velas e pedidos de intercessão ao Santo. Era a fé viva em São João Batista como protetor dos sertanejos. O Bebedouro e a Maniçoba formam uma longa avenida que converge rumo ao centro da cidade. Infelizmente, há poucos registros de festejos e celebrações religiosas na comunidade. Há depoimentos de que nas imediações da capela havia, também, um cemitério.
João Lourenço, veio a falecer na década de 40, picado por uma jiboia conduzida por um soldado bêbado e surtado, na feira de Santana. A serpente foi retirada às escondidas do criatório de animais exóticos, do quintal do coronel Lucena Maranhão pelo soldado Monteiro.
Assombrando a população da feira com o réptil sobre os ombros, o soldado entrou até na igreja matriz de Senhora Santana, por uma porta lateral e saindo na outra. No meio do povo feirante estava João Lourenço. Ao passar pelo cidadão, o policial embriagado e fora de si, jogou o ofídio nas partes íntimas de Lourenço. Embora a cobra não fosse peçonhenta, a vítima desenvolveu um mal que o levou à morte pouco tempo depois. (Oscar Silva, Fruta de Palma, 1953).
Após a morte de João Lourenço as terras foram vendidas e o destino da capela foi desprezo e decadência. As imagens dos santos foram levadas para outro local e o prédio entregue às intempéries.
Na década de 1970, a procissão de Senhora Santana incluía, no seu percurso, passagem pela igreja do Sagrado Coração de Jesus no bairro Maniçoba, cujo evento participamos em companhia da senhora Anazília Felix Mendes(1922-2010), nossa genitora.
Na mesma época, Liô(1918-1985), prestou serviços de iluminação a motor no bairro por ocasião da festa do padroeiro do lugar, Sagrado Coração de Jesus, sob a coordenação do senhor José Félix Vieira(Zé Rosa), líder comunitário.
Provavelmente naquele período a capela já estivesse fechada, sem nenhuma atividade porque nada se falava de festividades em honra a São João Batista da capela do bebedouro. Ainda assim, a construção continuava a despertar interesse de simpatizantes de história e curiosos, incluindo os mistérios sobre o período de auge e a vida religiosa de quem ali frequentava. Mesmo com fachada única na região, não mereceu os cuidados nem das autoridades, nem da sociedade civil para sua preservação.
Capela de São João Batista, anos 90 Fonte: autor
Nos anos 90, fotografamos o prédio que já estava com a estrutura totalmente comprometida, mas ainda de pé, com portas cerradas e a da cruz de madeira do átrio restava apenas o madeiro vertical. O perímetro se encontrava coberto de matagal rasteiro, catingueiras e mandacarus. Galhos de um pé de juazeiro entrelaçados formavam uma coroa de espinhos que pendiam sobre a janela quebrada e encaliçada.
Desprezada, seu interior abrigava dezenas de ninhos de marimbondos e morcegos, desestimulando qualquer pessoa de bom senso a entrar no salão cujo piso já tinha um amontoado de entulho que caia ao bel-prazer da ação do tempo; rebocos, telhas, tijolos, caibros e ripas cheias de pregos enferrujados.
Parecia uma arapuca temporal esperando o complacente e misericordioso olhar da reconstrução da fé. O altar vazio era a única lembrança de que ali, outrora, fora local de irmandade e de celebração de ressurreição que ardentemente desejamos. Somente o vento queixoso sibilava no salão sinistro para depois se dispersar pelas frestas e buracos, deixando-o abandonado nas noites frias do inverno junino. Na escuridão da noite o silêncio sepulcral tomava conta de tudo.
Em 2016, o seminarista e atual padre José Walter da Silva Santos Filho com base em pesquisas e consultas a diversos documentos da diocese levantou a hipótese de que a capela poderia ter sido construída pelo padre Francisco Correia, fato contestado por diversos historiadores e conhecedores do lugar.
Interior da capela, 2010
As ruínas ainda existentes continuam despertando o interesse de estudiosos e historiadores. Há alguns anos está em curso um movimento da sociedade civil, dentre eles: A Academia Santanense de Letras, Ciências e Artes e Centro Cultural do Sertão, representado pelo professor e historiador Tobias Medeiros no esforço conjunto para proteção das ruínas. A dificuldade maior reside no fato de que se trata de propriedade particular cujo processo judicial do espólio ainda está em andamento.
Ruínas, 2020. Fonte: autor
"Que o perdão seja sagrado
Que a fé seja infinita
Que o homem seja livre
Que a justiça sobreviva, ai, ai...
Assim como os três Reis Magos
Que seguiram a estrela-guia
A bandeira segue em frente
Atrás de melhores dias, ai, ai..."
(Ivan Lins/Vítor Martins)
Junho, 2022
Fontes de referência:
Chagas, Clerisvaldo Braga. www.clerisvaldobchagas.blogspot.com, consulta 06.2022;
Silva, Oscar. Fruta de Palma: crônicas nordestinas. 2ª edição. Cascavel, Assoeste, 1990
Bom dia Xará!
ResponderExcluirBelo registro, não são belas as imagens nem o estado que se encontra a capela...É uma pena.
Parabéns pela narrativa
Abraço
João Neto Oliveira
Bom dia Xará ! Prefereria não ter escrito estas páginas porque revelam o desprezo e a incoerência da sociedade santanense com a sua história.
ExcluirÉ verdade, João. Descaso total.
ResponderExcluirQueremos preservar pelo menos parte do que sobrou. Essa é a ideia.
ExcluirBelo texto, registro interessantíssimo. O texto escrito nos faz um grande alerta, informa o quanto devemos estar atentos ao descaso que é alimento para a corrosão do patrimônio, do registro, da história.
ExcluirA riqueza de detalhes expressadas no texto no remete ao tempo que que efusivamente se comemorava as festas religiosas, talvez passasse pela cabeça dos mais fervorosos que aquela igreja, exemplo de tanta fé, fosse um dia se tornar eterna, não em sua estrutura, mas em seu simbolismo. Lamentável o tempo e a morosidade de quem realmente pode fazer algo, permitir que aos poucos venha definhar até a inexistência de qualquer vestígio histórico daquele lugar.
Robson, vc fez reflexões contundentes. É a nossa missão!
ExcluirParabéns caro confrade e cronista João Neto Félix. O desfecho do episódio da cobra jibóia trouxe-nos a tranquilidade ao vê -lo esclarecer que cobras contristora (as que matam de aperto) não são venenosas. O relato histórico remete o escrito a posteridade no maís é agradecer pelo registro. Fabio Campos
ResponderExcluirObrigado caro Fábio pelo registro valioso.
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