Liô ( Leuzinger da Rocha Mendes)

 



Liô era apelido de Leuzinger (1918-1985), filho de João Mendes do Nascimento e Maria José da Rocha, santanense do distrito de Sertãozinho, radicado na sede municipal desde os anos 50, incluindo período em que a família residiu no distrito do Capim, atual Olivença.



Deficiente visual desde os seis anos de idade, aprendeu a conviver com ousadia sua limitação que nunca chegou a ser empecilho aos desafios que a vida lhe reservou. Dizia que a sua cegueira ocorreu após tomar banho nas cacimbas do riacho da vila de Sertãozinho, que foi elevada à cidade Major Izidoro em 1949.

Falava pouco sobre a infância e adolescência, talvez porque preferisse esquecer o difícil período da vida. Afirmava que tinha morado com uma tia por uns tempos após a morte dos pais e que a convivência tinha sido conflituosa. Nunca chegou a se alfabetizar formalmente. Viveu a adolescência e parte da vida adulta no povoado de Sertãozinho. Comunicativo, não se deixou abater pela limitação, buscando desenvolver seus talentos com força de vontade, tanto que aprendeu a andar de bicicleta nas cercanias do distrito.

Influenciado pelo tio Antônio Mendes (1920-2001), de saudosa memória, que era hábil violonista, identificou-se com a música chegando a tocar vários instrumentos; cavaquinho, violão e harmônio, instrumento comum nas igrejas. Integrou grupo de seresteiros da vila e se apresentava no circo J. Mariano que era da prima e comadre Maria José Rocha.

Foi tocando harmônio na igreja de Santo Antônio da Vila de Sertãozinho que conheceu sua futura esposa. Casou-se com a santanense Anasília Felix nos anos 40. Da união nasceram os filhos José Leônio, Maria Leônia, Leonilton, Luiz Daniel e João Neto. Os filhos Leonice, Leonísia Maria, Luiz Carlos e João Leonilo faleceram com poucos meses de vida.


Casal Liô e Anazília


Persistente, com auxílio de uma régua de madeira de uns 60 cm, deslocava-se de sua casa pelas principais ruas até ao centro da cidade. Às vezes, esbarrava e se machucava nos obstáculos nas calçadas. Quando isso ocorria fazia repreensões severas sem nenhuma cerimônia. Acessibilidade ainda era utopia. Com igual desenvoltura circulava nas cidades que marcaram sua vida. Acostumou-se desde cedo a superar seus medos.

Era pessoa inquieta e curiosa. Além de artista como profissão, era homem que não perdia oportunidades. Fazia tudo que estivesse ao seu alcance para sustentar sua família com a parceria da esposa.

Algo curioso chamava atenção: A paixão pelo tempo e os relógios. Os preferidos eram os modelos de parede que tocavam as horas. Gostava de tatear o mecanismo, sentindo o seu funcionamento. Fazia manutenção e pequenos consertos. Após o falecimento do padre Cirilo, recebeu de presente da irmã Marinalva Cirilo, relógio de parede que havia ganho por ocasião das comemorações dos vinte e cinco de sacerdócio.

Ainda nos anos 50 mudou-se com a família para o povoado do Capim, onde a esposa exerceria o cargo de professora na frente de serviço do DNOCS. Mudaram-se para Mata Grande e Pariconha, acompanhando as equipes de trabalho da autarquia. Após o fim das missões retornaram ao povoado Capim.

Após o governador Sebastião Marinho Muniz Falcão (1915-1966) cumprir seu mandato, assumiu em seu lugar o Major Luiz de Souza Cavalcanti (1913-2002), para cumprir mandato de 1961-1965. No início da sua gestão, como até hoje ainda acontece, demitiu boa parte de servidores contratados pelo antecessor. Dentre eles, em 1961, exonerou a servidora Anasília. A perda do salário afetou sobremaneira o sustento da família que enfrentou muitas adversidades.

O Governador Major Luiz Cavalcanti conquistou o título de maior desafeto de seu Liô, que prometera lhe dizer poucas e boas na primeira oportunidade. Por casualidades do destino, anos depois o encontro aconteceu e o então candidato a deputado federal não gostou do que ouviu.

1962. Padre Cirilo, percebendo as dificuldades recomendou e iniciou ações para mudança da família de Olivença para Santana. Sem dúvidas, uma cidade maior poderia oferecer mais oportunidades de trabalho. Requisitou veículo da prefeitura para transportar a mudança sob os cuidados do motorista José Gomes, vulgo Zé Sapo. Em seguida, procedeu à locação de casa de propriedade de Seu Antônio Azevedo e pagou alguns meses enquanto a família se organizava.

Como era músico da igreja de Olivença, continuou prestando seu trabalho normalmente, mesmo depois da mudança. Padre Cirilo também era o vigário da paróquia e semanalmente viajavam juntos. Na cidade também assumiu por uns tempos a função de músico, tocando para o coral da matriz de Senhora Santana.

O vigário intercedeu junto aos empresários Bartolomeu Barros e Jugurta Nepomuceno Agra vaga de balconista para Zé Leônio, filho primogênito, na loja “Casa O Ferrageiro”, comércio varejista de material de construção, ferragens e ampla variedade de produtos, sendo atendido de pronto. Zé Leônio encerrou as atividades laborais em 2020 após mais de 50 anos de serviços.

Nos anos 60 o Rotary Clube fez uma campanha para levá-lo a consulta com um dos melhores oftalmologistas do Nordeste na cidade do Recife, dr. Altino Ventura, mas o diagnóstico foi conclusivo: lesão irreversível em decorrência de acidente vascular cerebral que atingiu nervo óptico. A consulta foi acompanhada pelo empresário Bartolomeu Barros que declarou que o médico devolveu o valor da consulta. Atualmente os herdeiros do dr. Altino, comandam o Hospital Hope que mantém programa social de atendimento a pessoas carentes.

Conforme depoimento de Antônio Vieira dos Prazeres (1930-2014), compadre e amigo em seu livro "Minhas Memórias", de 2013, faz o seguinte relato: "A igreja de Nossa Senhora do Carmo se encontrava em estado deplorável, não tinha sequer forro, mas os ricaços de lá não tinham o cuidado de fazer uma reforma. Então, eu e o compadre Liô, que era músico da igreja, resolvemos fazer uma campanha para arrecadar fundos para fazer o forro. Isso ocorreu em 1965. Combinamos com o Padre Cirilo, que era o pároco da Igreja de Santana do Ipanema. Ele concordou e nos deu todo o apoio. Fizemos de tudo para arrecadar dinheiro com a população e fomos até Capelinha e Major Izidoro, onde muita gente ajudou. Com os recursos fizemos a compra da madeira e dos materiais que eram necessários e padre Cirilo ajudando, foi ele quem arranjou o mestre de obras."

Dona Anazília voltou ao quadro dos servidores estaduais nos anos 70 por intermédio da senhora Aquilina Bulhões (Dona Mãezinha), Terezinha e Eraldo Bulhões, amigos da família. Assumiu o cargo de zeladora do Grupo Escolar Padre Correia até se aposentar.

Teve a ideia de criar negócio de prestação de serviços elétricos e de alto-falante nas comunidades rurais nas épocas das festejas religiosas. O serviço volante era composto de grupo gerador com motor a diesel, gerador, gambiarras e serviço de som para transmissão das celebrações e animação da comunidade, tocando músicas. Comprou seu próprio veículo para os deslocamentos do negócio. Um jipe willys de quatro portas, o famoso bernardão. Eis algumas das comunidades em que os serviços foram prestados: Povoado Jorge, Tapuio, Quandu e Várzea de Dona Joana, Poço das Trincheiras; Maniçoba e Tocaias em Santana do Ipanema; Mombaça, Traipu e Tanquinhos, povoado de Água Belas PE, dentre outras.


Na porta de casa com a filha Leônia
e a neta Karolina
Nos anos 70, em parceira com Carlos Gabriel da Silva (Seu Carrito) José Urbano, Lourival Amaral, Cícero Rodrigues (Cícero Mão Branca), Sebastião Gabriel e Félix Gabriel reconstruíram a Igreja das Tocaias, cuja padroeiro é São Manoel da Paciência. A obra teve apoio financeiro de muitos santanenses, dentre os quais Alberto Nepomuceno Agra, Bartolomeu Barros, prefeito Adeildo Nepomuceno Marques e o Padre Luiz Cirilo, que celebrou a missa do encerramento das festividades. Outras edições foram celebradas no período de 1971 a 1974 com os mesmos organizadores. Liô prestava os serviços de iluminação e serviço de som durante as festividades.



Durante anos subiu os quase 100 degraus da escada de madeira até chegar à máquina do relógio de quatro faces que fica no penúltimo estágio da torre da Igreja Matriz de Senhora Santana para dar corda semanal e fazer pequenos reparos.

Em 1964, em parceria com Bartolomeu Freitas (Batinho/Bofão) fundaram a radioemissora clandestina com o nome empresarial de “Organização Mendes Oliveira”, nome de fantasia “Educadora Ipanema”. Deve ter durado um ano e meio, mais ou menos.

Leonilton, filho, foi discotecário e locutor. Apresentava crônica do meio-dia do colunista social Petrúcio Carvalho Melo ou Petrúcio C. Melo. Leônia, filha, foi a primeira locutora da cidade. Sob o comando de Chico Soares, a emissora chegou a transmitir “ao vivo” programas de auditório do Cine Alvorada e acirradas partidas de futebol dos rivais Ipiranga e Ipanema do Estádio Arnon de Melo. Foram locutores: Everaldo de Seu Oscar “Boi Deu”, Chico Soares e o próprio Batinho. A Educadora Ipanema funcionava no quarto dos fundos da casa de dona Maria Zuza, localizada na rua 26 de julho.

Nos anos 70, em parceria com o compadre mestre Adolfo, misto de serralheiro e músico, irmão do músico Saraiva, mantinha uma pequena banda musical de instrumentos de sopro em Cacimbinhas e eventualmente se apresentava em festas e celebrações religiosas. O grupo animou várias procissões nas festividades a Senhora Santana a pedido do amigo Liô.

Gostava de conversar e interagir com os amigos. Nos seus momentos de lazer gostava de jogar dominó e solucionar um quebra-cabeça, movimentando peças de madeira de diferentes tamanhos num pequeno tabuleiro, cujo desafio e solução estava em passar a peça maior de todas pelo espaço apropriado.

Por ocasião do casamento de João Moura,
dando nó na gravata do noivo.

Gabava-se das habilidades de jogador de dominó, assíduo no bar de Erasmo e na praça de São Pedro. Tinha fama de dar nó em gravata com qualidade e rapidamente.

Nos anos 80 estabeleceu-se para si o desafio - e conseguia -, de passar uma linha na fenda de uma agulha em menos de um minuto.

Com a saúde debilitada, faleceu em 1985 em decorrência de complicações cardíacas. Deixou-nos legado inesquecível de determinação, persistência e superação. Um sertanejo autêntico.



Março, 2022

Comentários

  1. Muito orgulho desse avô, história linda .

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  2. Que orgulho desse grande homen de quem herdei o nome. Quem dera tivesse herdado tantas habilidades

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  3. João de Liô,

    Seu Liô, seu pai, foi um exemplo de superação, persistência e honradez, apesar da limitação de um dos sentidos..
    Conheci-o pessoalmente e, como todos Santanenses da nossa geração, sabemos muito bem o valor moral do seu saudoso pai.

    Parabéns, Xará, por mais essa biografia que faz parte da história de Santana do Ipanema..

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  4. História linda de superação e amor! Sou muito grata em ser sua Neta, Vô Liô❤️com certeza fazendo festa no céu!! E meu Tio, minha admiração por ti em retratar tão bem a passagem dele na terra🤗🥰 Família meu porto seguro!!!!

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    1. Ele foi muito mais do que eu consegui descrever porque as palavras muitas vezes nos fogem, nos escapam e não traduzem fielmente a essência da grandeza da pessoa que ele foi. Um guerreiro incansável em busca do sua realização como pessoa. Levemos adiante seu legado.

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  5. Quanto orgulho, quanta emoção, alegria, orgulho senti com essa leitura, lágrimas de orgulho rolando em meu rosto. Obrigada tio João por relatar tão bem a história de Voinho, da nossa família. 🙏♥️

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    1. Em cada um de nós tem uma imensa parte de quem nos ajudou a chegar até aqui. Que a gente nunca esqueça nossa descendência! Levemos adiante !

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  6. Sebastião Malta30/03/2022, 18:35

    Parabéns Cabra Velho por completar a biografia de Seu Liô, inesquecível personagem da história de Santana do Ipanema (AL), cuja leitura, para quem teve o prazer de conhecê-lo é recheada de lembranças e emoções. Um abraço.

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  7. . Parabéns caro confrade João Neto, sei o significado de falar de uma figura a quem nós espelhamos, o pai. Tenho guardadas dentro de mim, lembranças de Seu Liô . Ao vê-lo acendia-me na alma o sinal do respeito e da admiração. Intrigava-me o que se comentava a respeito de suas fantásticas habilidades. Eu as concebia como algo incomum, extraordinário. Acho que minha mente de jovem, a época, não alcançava ainda o significado de superação.ass,, Fabio Campos.

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    1. Meus sinceros agradecimentos confrade Fábio pela consideração.

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  8. Que história linda!!!

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  9. Entre 1980 e 1986 trabalhei na linda e acolhedora Santana do Ipanema e pude conhecer histórias como a do seu Liô, que agora, depois da leitura do belo texto do seu filho João Neto, passo a conhecer um pouco mais.
    Uma viagem no tempo.
    Deixo aqui um abraço no João e no Leonilton, colegas de trabalho, e em todos os demais descendentes do seu Liô.

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    1. Dakson, obrigado pelo comentário. É uma satisfação encontrá-lo neste espaço. Grande abraço.

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  10. Conheci o senhor Liô. Muito admirado pela capacidade de superação. Parabéns! João pelo trabalho bem escrito sobre seu saudoso pai! Abraços a todos os filhos netos, bisnetos etc......

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    1. Agradecemos sua leitura e comentário.

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  11. Assunção. Comentário anterior.

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