Entendemos por ciganos um grupo de pessoas que são nômades, divididos em clãs que perambulavam pela Europa. ... Também são conhecidos como “Romi” e ao longo da história Ocidental foram marginalizados por conta do seu modo de vida, considerado incompatível com a sociedade europeia.
Originários do Noroeste da Índia, o povo que hoje é conhecido por cigano ou Rom partiu em êxodo desta região por volta do ano 1000 por razões ainda hoje não totalmente esclarecidas. Este povo espalhou-se pela Ásia e Norte da Europa num surto de migração que deu origem à denominação povo Rom.
Os ciganos no Brasil, conhecidos também como boêmios e quicos (em Minas Gerais e São Paulo), provém, principalmente, dos grupos Calé Ibérico, Ciganos portugueses e Ciganos espanhóis, também conhecidos como Gitanos. Este é o segundo maior contingente cigano no mundo, logo após os Estados Unidos.
Estima-se que aqui vivam aproximadamente 500 mil pessoas integrantes de povos ciganos distribuídos em pelo menos três etnias: Calon, Roma e Sinti. Dados do IBGE apontam que em 2014, 337 cidades abrigavam acampamentos ciganos, em 21 Estados. A maior concentração de acampamentos situa-se em Goiás, Bahia e Minas Gerais.
(Texto original a seguir)
Em 1929 chegou a Santana um cigano dos mais enfeitados que já vi. O bando era grande, mas ele se destacava perfeitamente entre seus pares. Chamava-se Damião e seu cavalo espelhava de tanta argola ou estrela de metal. Cheio de bolotas, o coxim branco da sela encobria aquilo que todo mundo sabia não se apartar de Damião: uma boa pistola.
Bem apessoado, trajado regularmente e todo cheio de aparentes boas maneiras, Damião conquistou logo a estima de muitos parvos santanenses que passaram a tê-lo em conta de boa bisca.
José Emerêncio Sobrinho, santanense da gema, conhecido por "Negro", residia com o pai e os irmãos no sítio Serrote, uns seis quilômetros afastado da cidade. Portador de ilibado procedimento e estimado de todos que o conheciam, Negro frequentava constantemente a cidade, sem temer a hora de percorrer os seis quilômetros de regresso à casa.
Achava-se o bando de ciganos arranchado em Bebedouro, subúrbio de Santana, situado na estrada do Serrote.
Certa noite, Negro voltava para casa e, ao chegar ao roçado de Pedro Castor, teve despertada a atenção por uma rês que havia arrombado a cerca e devorava todo o algodão a seu alcance. Além de sertanejo, Negro era profundamente humano: não poderia ver aquele estrago na roça de um amigo e passar indiferente. Dirigiu-se à casa de Pedro Castor para avisá-lo da existência de rês dentro da roca. No alpendre havia uma rede armada. Época de quente verão, pensou Negro fosse o dono da casa que ali dormia por causa do calor. Chamou-o duas ou três vezes pelo nome. Mas quem se ergueu foi o cigano Damião que, sem nada indagar, lhe desfechou seis tiros de pistola.
Damião fugiu, e Negro Emerêncio foi encontrado todo varado de balas, foi geral a revolta do povo, e o bando de ciganos teve de anoitecer e não amanhecer no lugar. Passados os primeiros momentos de tristeza, pôs-se a família Emerêncio no encalço do cigano e dizem que o matou lá para as bandas do Ceará. Os santanenses aprovaram aquela bonita vingança, mas, fincado no terreiro de Pedro Castor, ainda hoje um grande cruzeiro espera o transeunte e, de braços abertos, parece dizer-lhe: "Aqui morreu Negro Emerêncio. Correu aqui o sangue do inocente!"
Dos fatos ocorridos com ciganos, foi a morte de Negro Emerêncio o que me ficou profundamente gravado na memória. Antes, porém, foram os velhos santanenses testemunhas de outra cena de sangue, que aos crédulos parece explicar o mau destino de toda uma família da cidade.
Lá pelos idos de 1910, chegou a Santana um destacamento ou volante sob o comando de um célebre tenente Fagundes. A chega da de tropa de polícia em lugar sertanejo sempre foi coisa para chamar a atenção de grandes e pequenos, desejosos de saber o motivo do aparecimento de tantos soldados. Eis, sem dúvida, o que ocorreu com a volante ou destacamento do Tenente Fagundes.
Poucos dias depois, havia, porém, desaparecido essa expectativa e as atenções dos santanenses se voltavam para Antides Feitosa, que parecia um sargento diferente dos outros até então vistos no sertão. Os traços de homem civilizado, o aprumo do fardamento e a linguagem polida de Antides não tinham nada de comum com o porte de jagunço da maioria dos policiais que por ali apareciam. E isso foi conquistando a simpatia do povo para aquele sargento.
Entrementes andava por ali um bando de ciganos contra os quais a polícia recebeu logo uma grave denúncia de roubo ou coisa semelhante.
O sargento Antides foi mandado com alguns praças a prender o chefe do bando. Houve resistência ou qualquer coisa parecida por parte dos ciganos, choveu bala no rancho da ciganada, e o chefe chegou à cadeia gravemente ferido.
Tudo não passaria de simples arruaça entre a polícia e os ciganos; só por si não teria o fato alcançado eco, não fora a circunstância de o cigano ter mulher e achar-se esta com a barriga à boca.
No adiantado estado de gravidez em que se encontrava, a cigana fez um berreiro danado e, só não teve criança no meio da rua, porque uma família santanense lhe permitiu agasalhar-se sob as quatro telhas da residência. Dizem que a cigana pariu gemendo e rogando pragas contra Antides: Que ele teria de viver sempre sem sossego; que Antides jamais teria felicidade no lar que viesse a construir; finalmente, que o sargento cujas balas lhe feriram o marido haveria de ter uma vida pior do que vida de cigano.
Dias após, era o cigano ferido levado para o alto sertão, onde tinham eles um chefe em comum. E, na saída, tornava a cigana a benzer de pragas Antides Feitosa dos pés à cabeça.
Homem inteligente, o Sargento Antides não iria, sem dúvida, acreditar em efeitos das pragas da cigana. Algum tempo depois, embora a contragosto da família da noiva, casava ele com Hermínia Rocha, moça também inteligente, prendada e pertencente a uma das mais distintas famílias santanenses. Em seguida, por óbvios motivos, mandava às urtigas a farda da Polícia e começava nova fase na vida civil, tornando-se proprietário de terras no município de Santana.
Tudo cheirava a perfume no lar de Antides e Hermínia. O barquinho dos recém-casados corria de vento em popa, singrando sereno lago sob o azul de um firmamento de primavera. Os pombos brancos do sobrado de Coronel Manuel Rodrigues revoavam atraídos pelo jovem casal que baixinho arrulhava num cicio de madrigal.
Família de Antides e Hermínia morava vizinho ao sobrado
E nasceu Agissé.
Nasceu Agissé que, à semelhança de querubim, traria nas asas mais um pouco de felicidade para o lar do ex-sargento de polícia. Era o primeiro broto de esperança a florescer no coração de seus pais. Mas - Oh! destino perturbador de alegrias! Oh! desdita esmagadora de ideais! Oh! decepção! Agissé foi crescendo e trazendo consigo a tristeza de Antides e o pranto de Hermínia: aquela criança era débil mental. E, daí em diante, o menino maluco seria apenas diversão da cidade.
As desgraças, porém, nem sempre são eternas. E a mágoa do casal começou a arrefecer com o tempo e sob a esperança de um filho equilibrado. Quem sabe madame Cegonha não seria agora menos desumana para com eles dois?!
Nova gravidez de Hermínia. Repetição de projetos para o nascituro. Nova delivrance. Ah! Uma menina tinha forçosamente de ser normal. Berenice, ou Bébé, começou a crescer. Aumentaram as preocupações do casal. Nova decepção – outra maluquinha ao lado de Agissé.
Antides e Hermínia dariam o próprio sangue para conseguir que o casal de filhos adquirisse o que nunca tivera: sanidade mental. Mas, nem Antides nem Hermínia eram malucos e compreenderam só lhes restar uma esperança: outro filho. Terceira gravidez de Hermínia, terceira fase de planos e projetos.
Social como era e animador de festas e diversões, Antides continuava a conquistar a simpatia dos santanenses. Para o Alto do Cemitério subia o povo aos domingos a fim de assistir às cavalhadas feitas por ele e alguns santanenses. E, numa dessas tardes domingueiras, passando veloz por sob a argolinha do esporte, continuou o cavalo em disparada até jogar Antides contra a parede do cemitério. Custou-lhe a brincadeira alguns dias de cama e, quando deixou o leito, foi para presenciar a chegada do terceiro rebento.
Poni era uma nova perspectiva. Com ele seriam talvez compensados os dissabores da maluquice de Agissé e Berenice. Mas, enquanto Poni crescia, minguavam novamente as esperanças do casal. Eram já três os filhos insanos de Antides e Hermínia. A dor daquela mãe parecia-lhe maior que a própria vida. O sentimento daquele pai elevava-se ao desespero.
E Antides saiu pelo mundo, de déu em déu, à busca de felicidade. Foi bastante pouco tempo para que ele voltasse. Não havendo descoberto o exílio da felicidade. Quem sabe não estaria ali mesmo em Santana? Questão de perseverança, sem dúvida. E o casal saiu para a quarta partida de xadrez. Nasceu a mais linda criança daquele lar até então infeliz. Era, a última chance do casal. Antides, porém, havia perdido a fé no futuro e não achava jeito de ficar parado em parte alguma. Tornou a viajar.
Quase equilibrada, Labibe foi crescendo e vendo a mãe a lutar com três malucos e sem a presença e ajuda do esposo que a confortasse. Não podia aquela criança ser feliz em tal ambiente. Não lhe seria melhor ser também débil mental? Pelo menos, estaria livre de perceber o doloroso daquele quadro doméstico.
Um dia, porém, Labibe surpreendeu-se com a alegria penetrando no lar onde, há tempos, morava a tristeza e o sofrimento. Antides voltava cheio de dinheiro e risonho, beijava a esposa, abraçando os filhos malucos e acariciando e beijando a filha de juízo.
Terceira versão da capela de Sta Terezinha construída pelo Sr. Antides,
no morro do cruzeiro. Foto Jaelson Lima
Todo o povo de Santana teve de participar daquela alegria. Lá por onde andara, havia Antides feito promessa de erigir uma capela no morro do Cruzeiro e aí colocar a imagem de Santa Teresinha. Ninguém sabia nem queria saber o porquê da promessa. O interessante era a festa que iria durar alguns dias, o povo arrancando mato, fazendo rodagem para o cimo do morro, transportando tijolo e pedra na cabeça para o serviço da igrejinha e, depois, a verdadeira festa na capela, os foguetes estourando e vindo ecoar pelas ruas da cidade.
Mas, quando tudo parecia haver melhorado para Hermínia, que tanto lutava com Agissé, Poni e Bébé, eis que Antides tinha mesmo virado cigano e desaparecia de uma vez, sem ninguém saber para onde.
Casada, vive hoje (1953) Labibe com o esposo no Rio de Janeiro. Hermínia continua lutando com a insania de dois filhos homens e uma filha moça. A capelinha do Cruzeiro lá está, portas arrebentadas, santos fugidos, paredes riscadas de palavras obscenas, os morcegos fazendo dejeções no altar. E Antides fura mundo como judeu errante, sem que dele se tenha notícia - poderá estar preso, livre, vivo ou morto.
Enquanto isso, certas más-línguas santanenses, sem examinarem o lado social e econômico do problema, sem investigarem até onde influi o atavismo no fracasso de Antides e Hermínia, corroboram as superstições populares e exclama:
- “Tá brincando com praga de cigano!...
Oscar Silva
Janeiro, 2022
Notas explicativas:
Dona Hermínia Rocha, irmã de Frederico Rocha era parente do Cel. Manoel Rodrigues da Rocha (1857-1920). O casal Antides e Hermínia morava vizinho ao sobrado do coronel no centro da cidade. A infância de Breno Accioly (1921-1966), neto do coronel será marcada pela presença constante dos loucos, influenciando sua obra como escritor.
Para saber mais sobre o escritor Oscar Silva clique aqui
Fontes de referência:
https://super.abril.com.br/mundo-estranho/quem-sao-e-de-onde-vem-os-ciganos/ , consulta em 15.01.2022;
Silva, Oscar (1915-1991), Fruta de Palma – crônicas nordestinas -, 2ª edição. Cascavel, Assoeste, 1990.
Muito esclarecedora a história de Ántides e Dona Hermínia escrita por Oscar Silva. Além da aula sobre os Ciganos relatado por João de Liô.
ResponderExcluirParabéns, Xará!!
Xará, Oscar foi um escritor incrível. Homem sempre preocupado em registrar histórias marcantes do passado.
ExcluirDuas histórias muito interessantes! Sempre bom o resgate dessas histórias de nossa terra!
ResponderExcluirInfelizmente, são histórias tristes e enigmáticas.
ExcluirBreno Acioli descreveu a volta antides no conto João urso.
ResponderExcluirExatamente. Valeu Guimarães.
Excluir