1921-2021 – Centenário de nascimento do escritor Breno Accioly
LEMBRO-ME numa memória que me conta o meu Natal de nove anos. Era um Natal possuindo todas as cores do mel, bem como todos os possíveis desenhos das nuvens, e não lhe faltavam, apesar de toda essa riqueza estratosférica e marítima, as vozes da Nau Catarineta se arrebentando na amplidão de adeuses, sempre comoventes.
O Natal do bairro da Levada da sonolenta Maceió possuía manjedoura, além dos três Reis Magos, e a ele aderiam caixeiros, gigolôs, seminaristas, mulheres de cinco cruzeiros, viúvas, investigadores, Juízes, Cônegos, Desembargadores e doidos ficavam escavando as cavernas das ventas com que lâminas de unhas emporcalhadas, quando não soltavam palavrões, faziam gestos obscenos com as mãos, os dedos, os punhos, as línguas. Isso aconteceria em Maceió, mesmo pobre apesar das riquezas de Nau Catarineta, apesar dos berros dos instrumentos de uma banda de música lembrarem furiosas gargantas de crianças em férias.
Não havia Nau Catarineta nem Banda de Música no Natal de Sant'Anna do Ipanema, tampouco aqueles cestos subindo pessoas na Roda Gigante. Havia, no entanto, o Presépio de "Seu Hermídio", um artesão que obumbrava o prestígio de Pe. Bulhões, porque era ele o maior homem do Natal. Pe. Bulhões perdia de longe para Seu Hermídio, não porque a casa de Seu Hermídio possuísse uma sala que podia ser comparada a uma nave, de tão grande, mas pelo motivo de Seu Hermídio viver de canivete nas mãos, esburacando palmos e palmos de madeira, talhando, dando formas de imagens a toros que eram trazidos dos montes nos ombros de jumentos, na cabeça de biscateiros encachados e pornográficos. A matutada gostava de Seu Hermídio, outrossim as crianças, que aprendendo a falar logo balbuciavam "Sê Hermidi"- tão vasto como um rio, tão sozinho como um caramujo, tão impenetrável qual o mistério da morte.
Todos desconheciam o motivo por que Seu Hermídio não arredava o pé da casa, jamais alimentara um namoro, outrossim ninguém sabia ao certo onde ele havia nascido, nem pessoa alguma sabia precisar em que ano chegara a Sant'Anna do Ipanema aquele homem, alto, magro, à maneira de um cachorro faminto, olhando a todos de viés como se amasse a perspectiva dos ângulos; aquele homem que tinha como mundo uma casa de platibanda vermelha, coberta de telhas encardidas, bolorentas. Quando os habitantes de Sant'Anna do Ipanema abriram os olhos, era "Seu Hermídio" o mais íntimo de toda a cidade, aquele que recebia das crianças mais afeto, pois para as crianças Seu Hermídio parecia viver. Todas as vezes que o procurava, encontravam-no ou deslocando os olhos de Santa Luzia ou pintando as chagas de S. Roque, quando não colava o braço de um boneco maneta, destorcia o pescoço de um soldado de molas, aleijado às fúrias de mãos inocentes.
Mas como era suja a casa de Seu Hermídio! Aranhas bordavam redes pro seu arranhol do sono e lenços de prata que, tão leves, não conseguiram desfazer o equilíbrio da mais delicada e sensível das balanças.
E ainda existiam sapos enormes, alimentando-se de insetos que, por acaso, fossem visitar a cozinha, sapos-cururus, sapos-mijadores, capazes de cegar alguém com aqueles esguichos qual jatos de pútridos lança-perfumes venenosos. Seu Hermídio também não temia as lacraias, silêncios repelentes, abomináveis ferrões vermelhos, longe ou perto das paredes, imóveis à maneira de crocodilos que dormitassem.
Das redondezas chegava gente a procurar por Seu Hermídio, a trazer-lhe imagens desbotadas, crucifixos pubos, uma porção de coisas velhas, do tempo do onça, que pediam a atenção de mãos hábeis. E as mãos de Seu Hermídio davam jeito, descobriam um modo de amenizar aleijões, recompor traços e silhuetas devorados pela gulodice do tempo.
Somente à véspera da Noite de Natal Seu Hermídio espanava as janelas, enxotava os sapos, espantava caranguejeiras de pernas cabeludas, ao mesmo tempo que arrancava da face aquela tristeza que lhe adormecia os olhos, punha de lado aquela sua paciência, tão comum na vida dos bois. E fazia tudo isso para escancarar as portas, deixar à vista de todos o seu Presépio, onde o Menino-Deus dormia numa manjedoura do tamanho de uma banana-pão. O Presépio de Seu Hermídio era uma gama de molas invisíveis. Se se pusessem quinhentos réis no buraco de uma salva de papelão, colocada à direção do Norte, o Menino-Deus acordava e deixava-lhe o azul dos olhos sorrindo, enquanto N. Senhora balançava a cabeça, agradecendo liturgicamente, S. José levava a mão direita até as barbas (não sei por que), enquanto os cavalos dos três Reis Magos faziam menção de galopar pela estrebaria adentro. O Presépio de Seu Hermídio estava cheio de molas invisíveis, repito. E sentado ao lado do Presépio, à direção do Sul, Seu Hermídio vigiava os matutos que se acotovelavam, praguejavam ao disputar um lugar bem próximo do sorvedouro da salva de papelão.
Toda aquela engrenagem parecia suportar o peso de todas as esmolas do mundo. E que engrenagem inteligente! Se a esmola fosse de mil réis o Menino Deus ficava mais tempo acordado, enquanto a Estrela D'Dalva se inundava de uma luz perene. Tudo no Presépio era calculado, pois ninguém podia escurecer os dedos tocando naquele Rei Mago de cor preta. Dir-se-ia que o Presépio se assemelhasse a um mundo, cujas fronteiras fossem de arame farpado. Um parapeito impedia de ver-se mais de perto as ovelhas enfiarem a boca nos feixes de palhas; somente ao alcance da gente ficava a salva de papelão, engolindo, engolindo moedas, sem-cerimônia como um insaciável estômago uivante. Não posso esquecer-me da pergunta que fizera à minha avó:
- Terá por aqui algum Presépio como o de Seu Hermídio?
A resposta me magoou. E por isso mesmo eu detestei o rolar amoroso da Roda Gigante do Natal de Maceió, achei sem sabor o caldo de cana, recusei, obstinado, o convite que recebera de atirar flechas num alvo de fácil alcance, porque meu pensamento me levava para perto do Presépio de Seu Hermídio; para perto de uma Véspera de Natal em Sant'Anna do Ipanema, precisamente há um ano atrás, onde eu não me cansava de admirar a sabedoria de um homem semianalfabeto enriquecer ainda mais a riqueza dos sonhos mirabolantes de meus nove anos, com aquela N. Senhora balançando a cabeça, agradecendo as esmolas, liturgicamente, e o Menino-Deus sempre acordando para melhor ver a ingenuidade dos sertanejos.
Conto publicado na revista semanal “O Cruzeiro”, RJ, edição nº 8, em 18.12.1943.
Breno Accioly
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Novembro, 2021
Belo conto! Belas memórias...
ResponderExcluirE viva o Natal, da forma que o Sr Hermídio sempre imaginou...
Feliz Natal prá todos.