Música nas veredas do sertão por Wilson José Lisboa Lucena

 



Aos mestres, a reverência e o reconhecimento !



Banda de Música Santa Cecília, alcunhada de “Carapeba” – Santana do Ipanema – maestro Manuel Vieira Queirós (Acervo livro “Festas de Santana”, de Djalma de Melo Carvalho)


De conformidade com a tese do cônego Theotônio Ribeiro e Silva, considerada hoje como versão oficial, o fundador da cidade de Santana do Ipanema foi o padre penedense Francisco José Correia de Albuquerque, que deu início ao povoamento da localidade. Tudo começou quando o aludido evangelizador ergueu uma capela em honra a Sant´Ana na fazenda de propriedade do sertanista Martinho Rodrigues Gaia. À luz do jornalista, professor e consultor acadêmico, José Marques de Melo, em seu livro “Alagoas na Idade Mídia” (2013), na prosa metafórica de Graciliano Ramos, Santana do Ipanema constitui um espaço descrito como “terra espinhosa”, esculpida com “bárbara firmeza” e calcinada por “resistência agreste”. O certo é que essa região, aparentemente áspera e resistente, se tornou fértil em produzir um contingente de eminentes intelectuais, a exemplo do próprio José Marques de Melo, Breno Accyoli, Tadeu Gonçalves Rocha, Aguinaldo Nepomuceno Marques, Luitgarde Cavalcante Barros, dentre outros.

À luz do livro “Festas de Santana” (1970), mais precisamente do capítulo “Em tempo de retretas” (pag. 199 a pag. 204), do eminente escritor Djalma de Melo Carvalho, aproximadamente em 1918, na localidade de Capim, atual cidade de Olivença, o político Joel Marques, primeiro prefeito eleito da cidade de Santana do Ipanema, organiza uma bandinha, com cerca de quinze instrumentos. Cada instrumento pertencia ao próprio componente. Dentre eles, Jonas Aragão, Amabílio e Miguel Bulhões, Pedrinho Preto e Jovino Azevedo. A agremiação musical, contando com músicos natos, tomou impulso. Criou fama nas redondezas, a ponto de ser convidada para abrilhantar a festa de Santana do ano de 1920, recebendo os melhores elogios. Fez, inclusive, sucesso em carnavais daquela época.

Preparava-se o país para comemorar o centenário da Independência. Em Santana do Ipanema, sede do município, haveria solenidades alusivas à magna data. Benedito Melo, político e entusiasta por banda de música, mais tarde prefeito do município, resolveu formar uma banda de música para as comemorações do dia 7 de setembro de 1922. Para isso, foram recrutados os componentes da aludida bandinha da localidade de Capim, bem como promovida a arregimentação dos seguintes músicos: Manoel Vicente da Costa, Benedito Propício da Rocha, Manoel Ferreira dos Santos, João Lima, Virgílio de Sinhá, Coriolano Amaral, Lourival Amaral, Maherbal Aquino, Pedro Calado, Lucas Farias, Jorge Firmo de Melo, Diom Abreu e Manoel Panta. Surgiu, assim, a Filarmônica Santanense, popularmente conhecida por "Aratanha", sob a regência de Jovino Azevedo ou “Jovino Sebança”.

Também, à época, já existia outra corporação musical: a "Carapeba", fundada entre 1914 e 1918, renovada com novos elementos e instrumentos em 1922. Pertencia ao coletor federal, Sr. Manoel Vieira Queirós, seu próprio regente. Dela, participavam, dentre outros, os seguintes musicistas: Adauto Mendes Barros, Benício Mendes Barros, Dilermando Brandão, Manoel dos Reis, Pedro de Abreu, Manoel Anselmo, Joel Tavares, Belarmino Costa e Odilon dos Anjos. Travou-se, então, intensa luta partidária na cidade em torno das duas agremiações musicais. Havia adeptos ou simpatizantes tanto de "Carapeba", como de "Aratanha". A rivalidade entre os componentes de ambas era coisa que saltava à vista. Intriga, fofoca, ânimos exaltados. Apesar da rivalidade, as agremiações abrilhantaram as festividades do centenário da independência do Brasil, perfiladas sob a regência de "Seu Queirós”. Sucesso absoluto e um momento marcante na história cívica de Santana do Ipanema.



Banda de Música Santa Cecília, ano de 1940 – Santana do Ipanema – maestro José Ricardo Sobrinho (acervo livro “Festas de Santana”, de Djalma de Melo Carvalho)





Aratanha viveria com glórias até o ano de 1924, quando seu líder Benedito Melo foi eleito prefeito da cidade. "Carapeba", por sua vez, ainda viveu um ou dois anos mais, extinguindo-se, possivelmente, em 1926. Revoada de músicos. Muitos ingressaram em bandas militares e outros se tornaram profissionais. Jonas Aragão, por exemplo, sagrou-se famoso saxofonista internacional, com audições em vários países. Fixou residência em Lima (Peru). Infelizmente, morreu assassinado naquela capital. Amabílio Bulhões galgaria, mais tarde, o posto de contramestre da banda do 3º Regimento de Infantaria da Praia Vermelha, do Rio de Janeiro, sendo o primeiro colocado no concurso.

Em meados de 1935, por iniciativa do Senhor Nicodemos Nobre, com elementos remanescentes das bandas “Aratanha" e "Carapeba", foi criada em Santana do Ipanema a Banda de Música Santa Cecília cujo comando foi repassado ao maestro pão de açucarense Abílio Mendonça. Já encaminhada, sua regência terminou nas mãos do mestre Miguel Bulhões, que desenvolveu um competente e profícuo trabalho.

Novo aprendizado. Rapazinhos da sociedade local se entusiasmaram com o surgimento da nova banda. Dentre eles, Antônio Azevedo, José Ricardo Sobrinho, Abel Cunha, Miguel Félix, Orlando Pinto, Agripino Pontes, José e Celestino Chagas, Francisco e Manoel Ferreira de Melo, Ponciano Silva, José Cunha, Manoel Pereira Barros, José Constantino Melo, João Pontes, José Vieira de Farias, Milton Vieira dos Anjos, Nô Marcolino, Pedro Bulhões, Genésio Nascimento e Aníbal Vieira Costa.

Em 1940, assume a direção o jovem maestro José Ricardo Sobrinho, em cujas mãos a batuta ficaria até 1943. A trajetória desse genial maestro, de final de vida precoce, se acha sintetizada no livro “José Ricardo Sobrinho, um mágico da música” (1997), de autoria de sua filha Maria do Socorro Farias Ricardo. Segundo ela, o pai passou pela vida qual um meteoro. Regente da banda de música santanense e de outras cidades, excelente no relacionamento com seus músicos e fecundo compositor, além de líder de boas orquestras e de conjuntos musicais, a exemplo do conjunto feminino, criado no ano de 1940, que era composto de moças escolhidas na sociedade, algo inédito para a época, que se apresentavam em festa de padroeiros, bailes e saraus.

José Ricardo Sobrinho também era o comandante de um conjunto musical denominado de “Seresteiros do Sertão”, formado pelos músicos Darras Noya, Lourival Amaral, Antônio Preto, Celestino Chagas, Dilermando Brandão, Milton dos Anjos e Pedro Bulhões. De igual modo, afamadas as suas orquestras carnavalescas. O certo é que o maestro, em tudo que se envolvia, a sua luz brilhava. E essa celebridade em torno de sua pessoa se revelaria fatal. Ao comandar, em 1947, o carnaval da situação na cidade de São Miguel dos Campos, diante do grande sucesso alcançado, coronéis rivais da oposição, através de comparsas infiltrados no clube da festa, conseguiram injetar veneno nas bebidas de José Ricardo e de alguns músicos, ensejando, assim, o ocaso, aos 28 anos de idade, de um currículo fenomenal e brilhante.

Composição de músicos da banda comandada por José Ricardo: José Cunha, Pedro Bulhões, José Vieira (Zeca) e Celestino Chagas (clarinetas); Francisco (flauta); Lourival Amaral, João Pontes, José Constantino, Milton dos Anjos e Ponciano Silva (trompetes); Manoel Felix (trombone); Agripino Pontes e Guilhermano Brandão (barítonos); Genário (saxofone); Orlando Pinto e Nô Marcolino (tubas); percussão: Zé Chagas (bombo), Abel Cunha (tarol) e Manoel Cavalcanti (pratos). Outros músicos: Francisco Oliveira, José Panta, Miguel Felix, Darras Noya, José Ferro, João Yoyô e Genésio.


Componentes do conjunto musical feminino de Santana do Ipanema, criado e regido pelo maestro José Ricardo Sobrinho, inédito para a época (acervo do livro “José Ricardo Sobrinho, um mágico da música”, de Maria do Socorro Farias Ricardo)


Banda de Música de Santana do Ipanema sob a regência do maestro Miguel Bulhões – Homenagem ao Ipanema Atlético Club (acervo virtual antigo)


Nova evasão de músicos em vista da nova e prolongada interrupção da banda. Quase todos abandonaram os instrumentos. Somente em 1956, na administração do prefeito Hélio Cabral, novamente sob a batuta do maestro Miguel Bulhões, a Santa Cecília reabriria suas atividades com novos elementos. Aprendizes sem maiores vocações. Estava selada a sorte. A banda não reeditaria páginas de esplendor e glórias do passado. O adeus final veio no término do mandato do prefeito Ulisses Silva.

Em 1998, sob os auspícios da Prefeitura Municipal, foi criada uma jovem banda, que recebeu, com justiça, o nome do grande músico santanense José Ricardo Sobrinho. A responsabilidade da escola musical e da regência foi repassada ao veterano mestre capixaba, Paulo Ferreira Aguiar, portador de rica folha de serviço nos Estados de Pernambuco e Alagoas. Aos 81 anos de idade, porém bem lúcido, o velho mestre permaneceu no comando da banda, inclusive criando uma orquestra, até o seu falecimento ocorrido em 09.06.2005. Em seu lugar, assumiu o seu filho João Edson Aguiar (Edinho), também experiente mestre. Dada a dispersão instrumental, a sua atuação, que se estendeu por dois anos, se limitou ao ensino musical. Por falta de condições de trabalho, afastou-se. Era mais uma derrocada da trajetória da banda de música na cidade de Santana do Ipanema.

Enquanto isso, vale a pena recordar, pois recordar é reviver tudo o que foi bom outra vez. Dia de festa na cidade. Duas bandas de música faziam a retreta na Praça da Matriz. As inesquecíveis retretas envoltas em nuvens de recordações. De saudades dos velhos tempos que já não voltam mais. Cada uma se esmerava na execução de bonitos dobrados. Músicos da cidade, pratas da casa. Bem ensaiados, obedientes e compenetrados do papel que exerciam no harmonioso corpo da banda numa audição popular. Impecavelmente vestidos, engravatados e atentos aos movimentos do maestro. Olhos presos às partituras, instrumentos afinados e nota por nota executada cuidadosamente. Músicos amadores, falando a linguagem universal da música. Sem barreiras de idiomas. Sem interesses outros. Puro diletantismo. Gosto pelo sublime. Pelo que encanta a alma.

Naqueles idos, quem não aprendia música não era considerado gente de bem. “Aratanha” e “Carapeba”, as agremiações musicais da década de 1920, no esplendor da glória. Engalanadas, garbosas e juntas na Praça da Matriz. Era dia de festa. Era dia de retreta. O povo em volta, em silêncio e inebriado, acompanhando o ritmo do compasso. Ao final da execução de cada peça musical, os calorosos aplausos. Palmas vibrantes de puro incentivo. Os partidários de cada banda na contenda pelos aplausos, como se ali estivessem simpatizantes do cordão azul e do encarnado. Torcidas fervorosas, cada uma querendo sobrepujar a outra na vibração dos aplausos, do entusiasmo e dos apupos também, daí a motivação para os que compunham cada banda, ilustra o historiador Djalma de Melo Carvalho, em sua interessante abordagem: “Em tempo de retreta”.

Wilson José Lisboa Lucena (Penedo - AL, 20/02/1956 - Maceió, 01/06/2019)




Funcionário aposentado do Banco do Brasil, escritor e pesquisador, membro da Academia Penedense de Letras, Artes, Cultura e Ciências. Apaixonado pela história e desenvolvimento das bandas de música no Estado de Alagoas.

O pesquisador e jornalista Wilson José Lisboa Lucena lançou seu livro TOCANDO COM AMOR E TRADIÇÃO, com grande sucesso em Penedo (AL), sua terra natal, no dia 16.07.2016.

O livro é apresentado em dois volumes, um documentário inédito e de elevada relevância sobre a instituição “Banda de Música” em Alagoas.







O primeiro volume, com 337 páginas, incluindo cerca de 200 imagens ilustrativas, retrata a história das tradicionais bandas filarmônicas alagoanas, distribuídas em quatro regiões bandísticas. O aludido volume também discorre sobre os primórdios históricos da “Divina música”, da “Banda de Música Militar”, da “Banda de Música Civil”, da “Banda de Música de Coreto ou de Retreta”, alvo principal do trabalho, e das “Bandas de Música Centenárias Brasileiras”.





O segundo volume, com 312 páginas, incluindo 160 fotos ilustrativas, contempla as biografias de 75 maestros bandísticos. O conteúdo abrange ainda, os capítulos: “Corporações Militares” – “Flagrantes Pitorescos e Inusitados da Vida Musical – “Aspectos Conjunturais” – “Resistência e Relevância da Banda de Música” e “Reportagens Especiais Integradas”.






Contracapa (apresentação)
À luz de menção elogiosa do magistrado, bibliófilo e perscrutador histórico, Claudemiro Avelino de Souza, preconizada na contracapa do trabalho:

“Produto de esforço ingente, a obra representa um resgate histórico–documental sobre as bandas de música e maestros das Alagoas, cujas nuances e fatos a poeira inexorável do tempo tendia a ocultar. Brotou do intelecto do arguto e sagaz pesquisador Wilson Lucena, o qual se firma de vez, com este seu elogioso e árduo trabalho. Pesquisa, por certo, haurida ao longo dos anos, e que o revela contribuinte “primus inter pares”, dentre as abordadas temáticas inusitadas com o que se tem tentado preencher a lacunosa historiografia alagoana”.

Com efeito, numa verdadeira maratona, a pesquisa documental e de campo durou mais de 16 anos. Preliminarmente, o autor passou a comprar, em sebos diversos, em especial através da Estante Virtual, livros de “Autores Alagoanos” e de “Música”. Desses livros, 125 fazem parte das referências bibliográficas da obra. Depois, começaram as visitas a instituições envolvidas na capital, em especial corporações militares. A partir daí, as abordagens convergiram para o interior.


Sobre o autor Wilson Lucena


(pesquisador, jornalista, é integrante da Federação das Bandas de Música e Fanfarras de Alagoas).



Nascido em 20.02.1956, Wilson José Lisboa Lucena é um alagoano da cidade de Penedo, onde estudou e sempre militou culturalmente.

Aos 11.12.1975, tomou posse na agência local do Banco do Brasil, enveredando por uma auspiciosa carreira bancária, na qual exerceu, em seis unidades, o cargo de gerente geral, aposentando-se, em 27.07.2007, na agência Rua do Livramento, em Maceió.

Em 18.05.2005, graduou-se em Jornalismo pela Universidade Federal de Alagoas. A monografia de encerramento do curso foi “A Relevância Banda de Música como Fenômeno Histórico, Artístico e Sociológico”.

A sua grande paixão pela Instituição “Banda de Música” remonta à sua infância feliz vivenciada nas cercanias da Sociedade Musical Penedense, em Penedo (AL), nas quais também residiam o legendário maestro Nelson Silva e grande parte dos antigos músicos com as respectivas famílias. O certo é que a estimada banda de música passou a fazer parte do cotidiano de sua vida, vínculos que recrudesceram nas décadas de 1990 e 2000, quando um pequeno e fiel grupo de diretores, do qual fazia parte, assumiu a organização dos concorridos aniversários da agremiação musical.

No ano de 1998, com o advento da Federação das Bandas de Música e Fanfarras de Alagoas e do seu concomitante engajamento à diretoria da Instituição, a sua militância bandística, antes limitada às cidades de Penedo e a Piaçabuçu, estendeu-se para outras localidades, consolidando-se, assim, o projeto de historiar as bandas filarmônicas alagoanas e biografar seus maestros. Para tanto, foram comprados, em sebos diversos, mormente através da Estante Virtual, muitos livros das estantes de Autores Alagoanos e de Música. O “marco zero” foi o dia 20.06.2000, quanto foi enviado um calhamaço de malas diretas a todas as instituições envolvidas, sem nenhuma ressonância. O jeito foi resolver tudo pessoalmente. Na capital, os arquivos da briosa Polícia Militar de Alagoas tornaram-se um permanente ponto consultivo.

Mas, foi no interior, onde estão localizadas as tradicionais bandas civis do Estado, foco maior do trabalho, que se tornou o principal teatro de operações. Juntos, o Wilson e seu fiel motorista Elias Higino visitaram as sociedades musicais, residências de maestros e músicos, paróquias e párocos, cartórios, cemitérios, dentre outros. Mais de 100 colaboradores foi catalogado. Muito material relevante foi recolhido e copiado. Inúmeras fotos foram restauradas. Em suma, muita gente maravilhosa foi conhecida, tendo algumas já alçadas ao inevitável voo para a eternidade. Por isso, somente esse salutar circuito interiorano de pesquisa já poderia compor uma narrativa pitoresca à parte.

Faleceu em Maceió, em 01.06.2019.


Fontes de referência:

Catálogo on line de Banda de Músicas de Pernambuco (Iniciado em 2009)


(Consulta em 07.10.2021)

Ricardo, Maria do Socorro Farias, “José Ricardo Sobrinho, um mágico da música – História Familiar”, Blumenau, 1997

Comentários

  1. Mais um excelente resgate histórico da cultura alagoana, dessa vez trazendo em relevo o colega Wilson Lucena, que conheci durante os anos de trabalho de Banco do Brasil. Bravo!

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