Futebol e arte

 

        


Maio de 1969. Dias antes o palhaço com pernas de pau e outros artistas com as suas roupas coloridas haviam desfilado pelas ruas da cidade anunciando que o Circo J. Mariano estava na cidade para mais uma temporada. Enquanto desfilavam, meninos seguiam-nos gritando na maior arruaça.

E o cortejo seguia:

- O palhaço equilibrista com as enormes pernas de pau, exclamava: - Hoje tem espetáculo?

- A criançada respondia: Tem, sim sinhô!!

- Mas o palhaço, o que é? O coro replicava: - É ladrão de mulhé.

- E o palhaço, o que é? O coro bradava: - É ladrão de mulhé.

- E o palhaço, quem foi? O coro vociferava na maior algazarra: - Foi ladrão de boi!!

O circo chegou ao Brasil por volta de 1830, e aqui se adaptou às condições locais, tornando-se uma das mais importantes manifestações das artes cênicas, por meio das famílias vindas da Velho Continente. Os ciganos vindos também da Europa, apresentavam-se ao público de cidade em cidade, nos espaços que lhes eram cedidos.

Conta-se que o empresário artista pernambucano José Mariano chegou com a sua trupe para alguns dias de apresentações na cidade de Major Izidoro. Lá conheceu a senhorita Maria José da Rocha, casaram-se e formaram uma autêntica família circense de vida mambembe que rodou o Nordeste levando encanto e diversão dos espetáculos aos mais longínquos lugares. “A rotina se mantém na necessidade de alimentar a magia sem revelar os segredos de uma cultura com origem na França de Napoleão Bonaparte para o Brasil contemporâneo”. O casal teve seis filhos; Nilton, Gleide, Sandoval, Sandra, Vera e Vitória, todos artistas, além dos sobrinhos adotados.

Atualmente, a terceira geração da família permanece rodando o Nordeste adaptados aos novos tempos. O sobrinho José Wilson Moura, o “Zé Wilson” que mundialmente tem sido destacado como talentoso artista, proprietário do circo Spadoni e líder de entidade de defesa da categoria, sobretudo com participações em circos europeus, dentro os quais o “Soleil”. Há mais de 30 anos mantém “Picadeiro Circo Escola” na cidade de Osasco, São Paulo, oferecendo aulas e inúmeras outras atividades do segmento.

Zé Wilson conquistou recursos da lei de incentivo à cultura para gravação filme longa-metragem “O circo voltou” que conta sua história, sob a direção do cineasta e roteirista Paulo Caldas. Em 2019, a equipe itinerante de produção das filmagens partiu de São Paulo, passando por várias localidades onde os espetáculos eram apresentados até Major Izidoro, cidade onde tudo começou. O filme será lançado em 2022.

Quando o circo chegou em Santana do Ipanema para mais uma temporada, seu Liô, orgulhoso dizia que o circo era da sua prima e comadre Maria José. Naquele período, Nilton, o filho mais velho fazia parte da dupla do globo da morte. O globo da morte consiste em uma espécie de uma jaula em forma de esfera de aço onde dois ou mais motociclistas circulam perigosamente com suas motos por dentro dele. É atração de tirar o fôlego!

Entre malabaristas, equilibristas, trapezistas, palhaços, arte e celebrações o futebol era bem-vindo e por que não? Para festejar o momento Leonilton, que se intitulava o craque da família e um dos fundadores do Ipiranga, comandado pelo comerciante e futebolista Luiz Fumeiro, organizou partida de futebol de campo com a turma, cujas cores defenderia, contra um combinado do comércio local.



A arena artística com o picadeiro sob grandiosa tenda era montada em ampla área livre nas adjacências da rua da Baraúna. Em área contígua havia um campo de futebol de propriedade do Colégio Estadual onde seria realizado o jogo.

Naquele domingo, Dia das Mães, o esportista empolgado prometera à mãe presente especial: vitória do clube circense com um golaço, “numa torcida de sonhos, aplausos, talvez...”

O jogo ia bem, com chances de gols para as equipes. O segundo tempo iniciou com o rendimento impactado pelo forte calor até que, Leonilton, recordando da promessa, correu em direção ao gol com a bola dominada. Sentindo a força do talento partiu para a grande área; driblou um, dois e zás-trás.... O mundo sumiu coberto pela poeira! Parecia um planeta inóspito.

Quando se deu conta estava estatelado no chão de terra batida sozinho, todo empoeirado, gemendo de dor com o braço terrivelmente machucado e sem movimento. Chamaram às pressas Seu Moreninho, farmacêutico e prático de pequenos socorros. Após avaliação, o veredito: antebraço fraturado em decorrência de queda de mau jeito. O atleta foi levado ao hospital, encerrando sua participação na partida.

Em decorrência da falta maldosa sofrida na grande área fora marcada penalidade máxima, cuja cobrança foi convertida em gol. Os artistas venceram a partida pelo placar de um a zero.

Quando o jogador chegou em casa ao final da tarde, cabisbaixo e com o braço engessado, sua mãe, expressando espanto e preocupação, perguntou:

- Meu filho, o que foi isso?

- Mãe, infelizmente deram-me uma rasteira; caí, quebrei o braço, mas vencemos...



Novembro, 2021

Comentários

  1. Parabéns meu amigo. Ler estes escritos nos faz voltar o tempo e ver o quanto éramos felizes.

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  2. Muito bom, maravilhoso como sempre o seu texto, João!!! Parabéns!!!

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    1. Obrigado Goretti. Tão logo possível retorne com as suas publicações, contos e poesias.

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  3. Bom dia!
    Parabéns Xará...
    Mais um belo registro...
    Fico imaginando, por conhecer o Leonilton, a forma como ele prometera o tal gol...kkk
    Abraço

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    1. Valeu Xará ! Obrigado pela leitura e comentário.

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  4. Belo texto, para voltarmos ao passado e revivermos bons momentos

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    1. Obrigado Fernando. Realmente são muitas lembranças.

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  5. Caro confrade e amigo João Neto Félix, as belíssimas crônicas de sua autoria, aqui publicadas. Quero crer, com muita ênfase que conste de seus planos, um dia encerrá-las em um livro. Algo, digamos assim, muito justo que aconteça. Merecem que isto venha a termo, as crônicas, o cronista e nós vossos leitores e admiradores. ass: Fabio Campos.

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    1. Obrigado amigo Fábio Campos pela gentileza de suas palavras.

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  6. Um amigo meu do arqueológico de Cabo Verde, companheiro de Filosofia, no Rio de Janeiro (1985) cantava numa música autoral "Como é bom viajar!"

    De fato, João, o circo sempre nos levará a uma viagem fantástica do nosso passado. Principalmente se vier num texto rico como esse. Parabéns!

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    1. Olá grande amigo. É bom tê-lo por aqui. Obrigado.

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  7. Mais uma excelente crônica de João Neto Félix Mendes..
    Parabéns, João de Liô!!

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    1. Xará do Mato, obrigado pela leitura e comentário.

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