Por Cacá Diegues
(Cineasta
brasileiro, nascido em Maceió, diretor de filmes premiados como Bye Bye Brasil
e Xica da Silva)
A tradição da ficção brasileira, popular ou
erudita, sempre foi solar. Tivemos alguns excelentes poetas sombrios, como os
simbolistas Augusto dos Anjos e Cruz e Souza, mas eles serviram apenas para
confirmar a regra, como sempre acontece. No Nordeste, então, o horizonte dos
sonhos brasileiros, da nossa fantasia como país, sempre foi iluminado. Podíamos
admitir a fome, a miséria, o horror social, como está em tantos autores locais,
mas sempre como um estágio pelo qual somos obrigados a passar para chegarmos ao
país com que sonhamos e que fatalmente seremos um dia.
A cultura popular brasileira nunca abrigou bruxas
más ou pérfidos feiticeiros. Nenhum folclorista jamais encontrou ou encontrará
um conto de permanente assombração, uma narrativa que não desmonte o terror
antes que ele instale na moral da obra. Simples ou sofisticado, o autor
brasileiro de ficção, na prosa ou no verso, mesmo que tenha ideias sombrias,
está sempre comprometido com o sol que há de brilhar nas palmeiras onde canta o
sabiá. Por tudo isso, será sempre um autor de exceção, entre nós, o alagoano
Breno Accioly, do qual está sendo lançada a obra completa pela Imprensa Oficial
Graciliano Ramos, inclusive Cogumelos, seu segundo livro de contos, uma obra
prima.
Breno Accioly não viveu uma vida longa, nem
levezinha. Nascido em Santana do Ipanema, no interior de Alagoas, em 1921, logo
na sua adolescência foi diagnosticada nele uma esquizofrenia, da qual nunca se
livrou. A esquizofrenia era a causa de sua permanente depressão, sua
dificuldade em viver em sociedade, de viver com os outros uma vida que não
durou muito. Em 1966, a uma semana de celebrar 45 anos de idade, Breno Accioly
morreu no Rio de Janeiro, para onde havia se mudado poucos anos antes, vindo do
Recife, onde se formara em medicina. Ali, enquanto estudava, havia se tornado
amigo próximo de Gilberto Freyre e João Cabral de Melo Neto, admiradores de sua
obra.
Breno começou sua vida de escritor publicando o
livro de contos João Urso, em 1944, com o qual ganhou, no mesmo ano, dois
prêmios de grande repercussão- o Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira
de Letras, e o da Fundação Graça Aranha. Em seguida, até o ano de sua morte,
publicou mais três livros de contos: Cogumelos (1949), Maria Pudim (1955) e Os
Cataventos (1962); e um romance: Dunas (1955).
Mário de Andrade, líder do movimento modernista em
São Paulo, declarou que "de um nada, Breno Accioly fazia um conto e
acendia numa vela a chama da angústia humana". Mas não acho que o interesse
de Breno Accioly fosse propriamente pela angústia humana, que era seu tema
permanente. Na verdade, o escritor se interessava mesmo era em utilizar a
aparente angústia de seus personagens, (muitas vezes verdadeira) para revelar o
que havia de mais humano nas reações perversas de seus leitores, em muitos
casos representados por outros personagens, nem sempre ligados à trama
corrente. Esse era um poderoso vezo de Breno em seus contos, o que fazia do
autor um original escritor de temas sombrios, muito menos preocupado com o que
pensavam e como agiam seus personagens heterodoxos, mas o que nós, seus
leitores, pensávamos sobre o comportamento deles.
Apesar de
tudo, não tem aqui nada de parecido com a de sombras de língua inglesa, por
exemplo. Breno se diverte sozinho com sua narrativa. Ele cria personagens que
não vieram ao mundo, o seu mundo, para se comparar com a nossa miséria, para
inventar corvos que nos seguirão pela vida afora, como invenção exemplar. Para
contar suas histórias, o autor apenas constrói personagens para que os
julguemos e para que sejamos julgados pelo modo que eles agem. Breno Accioly
está sempre voltado para o que fazem e pensam, seus personagens, mas usa as
palavras como um construtor usa tijolos para se exprimir. E elas valem e servem
para alguma coisa a mais.
Em vez de criticar o comportamento final dos
principais personagens, a obra de Breno Accioly nos ensina a amarmos a nós
mesmos, mas no outro. Como se a imagem do outro fosse desenhada por nós mesmos.
No fundo, estamos buscando o que somos.
Como não acredito em mágicas artísticas, só posso
imaginar que Breno Accioly não escreveu para esse nosso tempo, nem para tempo
nenhum. Ele escreveu por uma necessidade pessoal, insuperável e necessária,
para sua satisfação e grandeza. Se Breno Accioly não se tornar uma estrela de
nossa ficção hoje, poderá sê-lo amanhã, por qualquer outro motivo. Ou nunca,
tanto faz.
Outubro de 2021
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