Santana do Ipanema é uma cidade toda cercada de elevações. Subindo-se o cimo do morro do Cruzeiro e tentando-se daí abranger, em rápida olhadela, o horizonte em frente e aos lados, vê-se a cidade como que na focal de uma elipse começada à esquerda na serra da Barriguda e passando pela serra Aguda, Remetedeira, Caiçara, Poço, Serrinha, Pelado, Camonga, Gugi, Macacos, Serrote e Gonçalinho, para fechar-se aos próprios pés do observador.
Em sua grande maioria, porém, esses montes não passam de simples elevações de uma caatinga cheia de cactos e arbustos rasteiros, sujeita a todas as mutações climatológicas do sertão nordestino: enverdece nas épocas chuvosas e fica ressequida, seminua ou despida nos períodos estivais. Algumas, todavia, como a serra do Poço e o Gugi, são verdadeiros oásis suspensos, a lembrar celeste Nabucodonosor construindo ali um segundo Jardim de Babilônia.
Há flagrante contraste entre a vida da capoeira e a da serra do Poço ou do Gugi. Dessas duas elevações descem para a cidade, nos grandes estios, cargas de água cristalina como os santanenses não possuem mesmo nos dias invernosos. E descem as boas frutas, a jaca, a manga de qualidade, a laranja doce, a jaboticaba e a cana caiana de gomos de palmo e meio. Desce o melado, desce a rapadura e desce o alfenim de engenhocas que o homem da capoeira só conhece quando tem coragem de subir a serra.
A serra é um como pedaço de mata que um cataclismo arrancou e atirou para o meio do sertão. Quem, a cavalo ou a pé, começa a galgar-lhe a íngreme subida, vai observando, de um lado e outro do caminho, vegetação bem diferente da que viu até há pouco na caatinga. Cedros, perobas, amarelos quase gigantescos erguem os braços onde pousam cigarras que não sibilam, mas soltam um como longo apito de navio que trouxesse do mar o seu adeus ao sertão. E lá em cima o vento sopra e ulula dia e noite, nas folhas daquelas árvores, ora cantando, ora assoviando e fazendo pensar num ser invisível que estivesse a ornar tudo aquilo por simples capricho de senhor feudal.
E se, ao contemplar esse mundo diferente, o indivíduo se volta do meio da ladeira, vê em baixo a caatinga de arbustos tortos e mirrados, como a dizer estar nela o sertão verdadeiro, a realidade em contraposição àquele verdor, àquela figurada abundância que não passa de simples miragem no meio do Saara nordestino.
Embora filho das margens Sanfranciscanas, o velho Pereira viveu e morreu na serra do Gugi. Conheci-o em casa de minha avó, aonde vinha ele invariavelmente todos os sábados para a feira da cidade e, vários domingos e dias-santos, a fim de assistir à missa, como bom católico que era.
Foi a convite do velho Pereira que eu e minha tia saímos um dia de domingo e fomos conhecer-lhe o pequeno sítio na serra do Gugi. Diziam-nos que o Gugi ficava a cerca de três léguas de Santana, distância irrisória para o sertanejo, menino ou adulto, que anda a pé quinze, dezoito e até vinte léguas por dia.
Serra da Camonga
Partimos pela manhã. Imburana do Bicho, sopé da Camonga, novamente a estrada reta, riacho do Gravatá e, antes de nove horas, serra do Gugi. Quis assustar-me com aquele eco vindo do meio da mata. Tranquilizei-me, porém. Minha tia explicou: as cigarras da serra cantam como carros de bois transportando carga pela estrada afora.
Depois de grande ladeira, à esquerda do caminho, a casa do velho Pereira. Chalé de taipa e telha, cozinha coberta de palha de Ouricuri. Paredes sem reboco e cheias de torrões machucando-nos as costas quando tentávamos repousar o espinhaço moído da viagem, cansado da subida.
Alguns instantes depois da chegada, foi-nos servido cuscuz de milho com feijão e carne-de-sol assada. O velho se desculpava por não lhe ter saído a gosto aquilo que ele chamava de "pão de milho".
Depois desse almoço, deixei os velhos conversando e saí com Benedito, o último dos filhos de Seu Pereira. Fomos andando sítio em fora, enquanto eu me admirava das touceiras de cana caiana (era a primeira vez que via touceiras de cana). Depois destas, surgiam umas duas dúzias de bananeiras, com grandes cachos inclina dos e os sabiás voando por cima.
Benedito chamou-me a atenção para uma pequena garganta à direita, da qual saía, contínuo e ininterrupto, um fiozinho de água cristalina. A minha admiração ia-se tornando encantamento: eu só conhecia água amarela de cacimba, água barrenta de açude, água morena de pilão, água suja de cis terna e água turva das cheias do Ipanema. Não resisti à tentação: baixei-me, uni as mãos em forma de concha e fui aparando e bebendo aquela água fresca, até quando os intestinos não mais aguentaram. Mas o Benedito ainda não me havia apresentado a mais gostosa das surpresas.
Deixamos as touceiras de cana, as bananeiras, o olho d'água e metemo-nos por entre um mato ralo que nos levou ao pequeno pátio das jabuticabeiras. No sertão há uma espécie de gafanhoto pequeno, preto de cabeça vermelha a que se dá o nome de soldadinho; quando a nuvem de soldadinhos toma conta de um arbusto, este fica enfeitado de preto e vermelho desde o tronco a todas as galhas. Pois, foi dos soldadinhos que me lembrei quando vi as jabuticabeiras cheinhas de frutos, de cima até embaixo. Comemos jaboticabas até fartar o apetite, deitamo-nos ali mesmo e dormimos. Quando abrimos os olhos, era de tarde e o velho gritava por nós. Minha tia queria regressar no mesmo dia. E eu tornei a Santana certo de estar voltando de um mundo à parte, de um mundo onde a vida valia mais do que um tostão de mel coado.
Oscar Silva (1915-1991),
Fruta de Palma: crônicas nordestinas. 1ª edição, 1953.
2ª edição. Cascavel, Assoeste, 1990.
Vindo ao mundo na primeira grande seca do século (1915), operário de tecelagem, balconista de botequim, integrante da PM que combateu Lampião, servidor público civil estadual, funcionário do correio e do Ministério da Fazenda. Enveredando pela política, assumiu posição de esquerda, que lhe rendeu além de algumas cadeias, prejuízos na vida profissional. E daí? Daí que um autêntico pau-de-arara não recua frente aos chifres de boi brado. Na literatura, autodidata e petulante, muita gente não lhe iria perdoar a ousadia do ingresso como escritor e muito menos as editoras lhe abririam as portas. Daí quem escreve quer ser lido. E o nordestino teimoso só encontrou um caminho: publicar às suas expensas o que fosse escrevendo.
Patrono da Academia Santanense de Letras, Ciências e Artes, cadeira n° 27, ocupada pelo escritor Djalma de Melo Carvalho
Faz muito tempo que não como jabuticaba... até me deu vontade agora
ResponderExcluirBartô, na época da safra tem muita jaboticaba na serra do Gugi. Em Palmeira dos Índios, na serra das pias, uma comunidade está fabricando vinho, compota, geleia e a fruta cristalizada. Vale a pena experimentar. Quando puder, vá conhecer.
ExcluirAinda não havia lido esse artigo de Oscar Silva, Miragem da Serra. Uma descrição sobre sua viagem a pé, saindo de Santana com destino à Serra do Gurgí, para conhecer o Sítio de Seu Pereira situado no sopé da Serra.. Que Beleza!!
ResponderExcluirParabéns, Xará, pela republicação dessa jóia.
Valeu Xará. Oscar Silva merece ser lido, sempre!
ExcluirCaro confrade, senti-me como se tivesse fazendo o percurso até o alto da serra. Ora junto com o Oscar, ora junto com o amigo. Lembro de um vez que fiz uma excursão a Serra do Poço, juntamente com Fernando de Seu Lucas, também seu saudoso irmão, Afrânio, e o escritor Marcello Ricardo. Acabamos por nos perder, no alto da elevação. Mas foi só uma aventura a mais, que aqueles jovens tiveram, no fim da década de 70. No passado, contar aos colegas. Hoje aos netos. Parabéns! Belíssimo retrato bucólico do nosso sertão, tão sazonal. ass. Fabio Campos.
ResponderExcluirLer Oscar Silva nos traz muitas recordações. Uma viagem aos tempos de outrora.
ExcluirOscar Silva é meu avô paterno, e carrego com muito orgulho o nome dele. Me chamo Oscar Henrique de Souza e Silva, e nasci e resido até hoje em Toledo/PR, cidade que acolheu o santanense e sua família no início dos anos 1960. A biblioteca municipal daqui carrega o nome de Centro Cultural Oscar Silva, que foi quem doou seu acervo quando da construção da mesma.
ResponderExcluirOscar é um prazer tê-lo nesse espaço. Precisamos estreitar os laços.
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