O ônibus da autoviação princesa do agreste seguia noite adentro. Seus faróis eram a única garantia de vencer a escuridão. Os fachos de luz atravessavam impiedosamente a poeira que pairava no ar. Os solavancos do veículo na estrada de terra acordavam os passageiros de instante em instante. Sobressaltados e insatisfeitos se entreolhavam reclamando da falta de cuidado do motorista que vigiava atento o caminho que nos levava a Palmeira dos Índios, mas pouco podia fazer para aliviar os sacolejos da estrada esburacada.
Meu medo era outro. O mistério do breu que envolvia a viagem. Minha segurança era o amparo da minha mãe. Ao seu lado eu tinha a coragem estática dos heróis dos gibis. Enquanto não adormecia, mesmo amedrontado, insistia em olhar pela janela a paisagem oculta pelo manto das trevas. Algumas poucas luzes piscavam ao longe como faróis a alertar dos perigos iminentes. Mal sabia eu da relatividade das coisas; a escuridão que me assombrava, dava vida às criaturas noturnas: “Toda noite no sertão, canta o joão-corta-pau, a coruja mãe da lua, a peitica e o bacurau...” Não fosse a noite, o dia de trabalho seria martírio infindável e o descanso, longe, muito longe.
Chegamos há pouco. Ainda era madrugada. O movimento da plataforma da estação ferroviária era novidade para aquele menino. Alguns vagões já estavam alinhados sobre os trilhos. As locomotivas se movimentavam lentamente de um lado para outro, enquanto outra entrava na rotunda para alterar a rota da viagem. O próximo trecho seria de Palmeira dos Índios a cidade de Porto Real do Colégio, passando por Igaci, Arapiraca, Lagoa da Canoa e Campo Grande.
Dirigimo-nos ao guichê para a compra dos bilhetes. O vendedor devidamente fardado e engravatado, exibia com altivez seu quepe de general com o brasão da Rede Ferroviária Nacional. Enquanto aguardávamos, sentamo-nos, aguardando o embarque. Não demorou muito para que a locomotiva à marcha ré e fizesse o acoplamento com o comboio provocando um grande barulho.
A ansiedade era intensa, pois ali era local de encontros e despedidas. Alegria e tristeza se revezavam ao bel-prazer do acaso.
Após o embarque, o chefe de trem passou para pelo recolher as passagens e conferir os últimos procedimentos antes da partida. Trazia consigo a máquina reluzente e inoxidável que perfurava e picotava, um a um, os bilhetes dos passageiros.
Lançando sua fumaça e seus apitos, a Maria Fumaça iniciou a viagem lenta, cadenciada, atravessando o sereno da madrugada que parecia infindável. Enquanto se afastava, nova cerração surgia e o que ficava pra trás era encoberto pelas brumas.
Chegamos a ribeirinha cidade de Porto Real do Colégio, última etapa do percurso sobre trilhos. A travessia do Rio São Francisco era feita nas lanchas que partiam o todo instante a cidade sergipana de Propriá.
Os primeiros raios de sol incidiam sobre as águas agitadas do velho Chico desenhando aquarelas surreais. Quando eu tocava à flor d’água novas formas surgiam encandeadas pelo lume disperso. O barulho da aceleração do motor a diesel impulsionava a embarcação a singrar as águas revoltas do rio que fluíam a despeito das vontades e queixas humanas.
Naquela simbólica viagem de 1966 fomos visitar dona Virgínia que morava no lugar há alguns anos desde que se mudara de Major Izidoro, após a morte do marido João. Preferira morar perto do pescador Manoel, seu filho mais velho.
A partir daí o véu do esquecimento cobriu as memórias do garoto. Sobraram itinerários e situações, no lugar da alegria da celebração daquele notável encontro, que se tornou derradeiro. Tanto tempo depois ainda não consegui desvendar o enigma que supere a frustração do lapso de memória de um dos poucos momentos de afeto com a vó Virgínia, que veio a falecer alguns meses depois.
Às vezes, mais importante que o destino é o caminho em si, dizem os filósofos. Eu preferiria ter esquecido o trajeto e relatado minunciosamente a magia desse momento. Não tenho dúvidas de que tudo está gravado nos recônditos d’alma e que nada vai alterar o que foi deveras vivido ainda que falte a revelação.
Muita coisa mudou em mim, exceto a contemplação e veneração aos eventos da vida mesmo que eu não os compreenda, porque nem tudo na vida pode ser explicado. As emoções precisam encontrar uma saída e sempre encontram.
Embora não tenha convivido nem com avós paternos ou maternos, meu nome presta-lhes homenagem. Quando eu não estiver mais aqui, em algum ponto de convergência do universo, encontrar-nos-emos não como neto e avós, que são convenções terrenas, porém marcados pela imanência dos elos espirituais forjados no fogo da vida predestinados à perpetuação.
Setembro de 2021
Já não é mais o apito ou o barulho do trem sobre os dormentes que lhe acordam, mas a saudade daquilo que poderia ter sido… E foi. Acordam para lembrar que nada acaba, tudo continua. Até nossos entes queridos que já dormem sonham que a vida segue em frente.
ResponderExcluirParabéns pelo texto autobiográfico.
Obrigado, você escreveu mais um pedaço com maestria.
ExcluirMais um belo texto, João! Todos nós temos um passado que é latente, pois é composto de momentos que determinaram nossa trajetória. Parabéns, acima de tudo, pela clareza da elucidação, que nos permite viajar juntos noutra lembrança daquilo que tão longe, está presente bem ali nas digitais da memória!
ExcluirObrigado Joselito. Há memórias e momentos que não se desvencilham de jeito nenhum.
Excluir👏👏👏🥰🥰🥰
ResponderExcluirValeu !!
ExcluirExcelente 👏👏👏👏👏👏👏👏
ResponderExcluirObrigado Bartô.
ExcluirParabéns caro amigo e confrade João Neto. Gosto muito de lê-lo. Você traduz muito, de muitos. "Muita coisa mudou em mim" frase que inicia o penúltimo parágrafo. É interessante ter esse tipo de percepção. De como carregamos a criança que fomos dentro de um homem que parece uma outra pessoa. ass. Fabio Campos.
ResponderExcluirObrigado prezado confrade. Estamos em constante aprimoramento, sem exceções, ainda que não percebamos.
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