Na subida da ladeira o velho motor da kombi branca roncava cadenciado mostrando vigor na jornada diária de conduzir os parceiros ao trabalho na vizinha cidade sertaneja de Poço das Trincheiras. Distante 12 km, sendo 3 de estrada de chão, incluindo uma passagem equilibrista sobre uma ponte de madeira quando o sol já se escondia na linha do horizonte. Nas trovoadas o espetáculo das cheias do Riacho do Sítio era parada obrigatória.
Já nem sei direito o seu nome. Viajar é mais, eu vejo mais a rua, luz, estrada, pó, a kombi embranqueceu. E no ar livre, rodando livre vamos chegar e aprender, sem nada temer senão o correr da luta e esquecendo o medo.
Eu era o parceiro mais frequente; ora passageiro, ora motorista, fiel depositário e cuidador. A vida é assim: fazer de tudo um pouco à mercê das exigências que chegam de repente querendo de nós ação.
O trabalho era o nosso ponto de convergência. De comum acordo adquirimos o veículo usado para tornar a vida mais prática e econômica. Nem sempre foi. Contudo, não havia alternativa. Naquela marcha estradeira não havia transporte coletivo regular e era necessário cumprir o regulamento.
De papel passado, o contrato versava sobre regras de uso: deslocamento, exceções; rateio de despesas de combustível, licenciamento anual, manutenções e aquisição compulsória de cota parte pelos demais em caso de transferência.
Com laço civil tão forte qualquer tentativa de separação seria dolorosa quando fosse levada a termo. E foi. Três Marias; do Socorro, das Dores e uma Isabel. João, José, Bartolomeu e Antônio. Sete destinos diferentes, sete sinas e muitos caminhos para o coração.
Fui condutor, quando quis ser passageiro e passageiro quando quis ser condutor. Do para-brisa, horizonte e liberdade chegavam e passavam rapidamente. O meu pensamento voava livre em sonhos pra muito longe de onde estava. Coisas da vida, abstrações.
Incansável, a velha kombi ofegava na labuta diária e ganhava sobrevida com tantos retornos à oficina, cuidada por mecânico mensalista. Serviu de autoescola e novos motoristas e passageiros ganharam os caminhos das estrelas.
Como nem tudo é só trabalho, no fim de semana ganhava um banho, vida revigorada com troca de óleo, motor reajustado e pneus calibrados esperando novas jornadas.
Os anos de passaram. Um belo dia, quando menos se esperava, os regulamentos da terra dos homens alteraram destinos sem aviso prévio. Um José e duas Marias se foram por outras veredas, desfalcando parceria que parecia duradoura.
De repente, o desencantou chegou. O desvencilhar-se se agigantou no dia a dia. O momento que todos temiam parecia chegar tão rápido quanto os pneus que giravam na estrada. Enternecidos, designamos novo abrigo. A velha kombi ganhou um banho de despedida. Empalideceu com tanto brilho. Recusou-se a funcionar, engasgada com lágrimas nas engrenagens.
Paralisada no meio da rua, embotada pela despedida, resistiu e hesitou. Como os homens são impiedosos forçaram-na a pegar no tranco na ladeira. Subitamente cuspiu fogo que se espalhou rapidamente e tudo se consumou. Arriscar é impreciso.
E agora, João? A festa acabou, o fogo ardeu, a luz apagou, o povo sumiu e a noite silenciou. O fotógrafo com a empáfia fingia se compadecer exibindo troféu que não lhe pertencia, zombando dos corações feridos com riso sarcástico. Abstivemo-nos de palavras vazias. Mudos e exaustos saímos um a um.
No mistério da ferrugem a kombi flutuava e revivia nas imagens em que se via correndo parada, como se não existisse nem partida, nem chegada. Atordoados e sem rumo sumimos no atalho. Restou apenas um retrato. Na frente nada, atrás poeira.
Agora sou um contador de histórias de mim. Vivo do que fez meu braço. Meu braço faz o que a terra manda. Voa tristeza, voa vento, voa tempo, voa... O resumo é de cada um...
Setembro de 2021
Bom dia Xará!
ResponderExcluirParabéns pelo belo registro, tratado, às vezes, de forma cômica com sentimentos de perda e de alegria por ter tido a oportunidade de ter vivido essa história...
Abraço
Bom dia Xará ! Obrigado pelo comentário. A vida tem dessas coisas...
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ResponderExcluirPoesia em estado puro, se reparar direitinho, João, temos aqui um roteiro perfeito de um filme de amor e dor entre seres vivos e pulsantes, inclusive a “falecida”. Parabéns!
Obrigado Hayton ! Seu comentário é muito valioso e incentivador.
ExcluirNossa! Eu emocionada com esse texto! E com a foto. Eu estava nela. Parabéns pelo belíssimo texto. Eu imprimi para mostrar a todos ao meu redor.
ExcluirJoão, excelente. Você me fez reviver aqueles momentos mágicos. Foi nessa Kombi que você me ensinou a dirigir
ResponderExcluirBartô, vivemos experiências incríveis que jamais serão esquecidas...
ExcluirÔpa, estou por aqui! Parabéns João. Bartolomeu essa de aprender a dirigir na Kombi eu não conhecia. Rsrs
ExcluirFala Rubião, tudo em paz? Bacana ter você por aqui.
ExcluirCaro amigo e confradre João Neto Félix Mendes, as palavras que eram pra serem ditas já foram. Resta-nos parabenizar por essa narrativa de um flagrante real da sua existência. nos trouxe algo? Claro, o filme Bye bye Brasil.
ResponderExcluirCaro confrade Fábio Campos obrigado. Você é muito generoso.
ExcluirQue texto belo, João! De uma poesia pulsante. E lida ao final, com um fundo musical de som instrumental da melodia de "E agora, José?", de Paulo Diniz, sobre a obra de Carlos Drummond de Andrade, em razão do antepenúltimo parágrafo, dá um toque adicional que, como registrado por Hayton, é roteiro pronto. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado Fernando pelo comentário. Você tem razão. Obrigado.
ExcluirSinhô,
ResponderExcluirEssa Kombi tem História. Traz a saga da Agência de Poço das Trincheiras. Ou Póço de Las Trinchéras, como dizia a lenda chamada Raimundo Aquino.
Abraços do velho Kupim
Sinhô, é muita história... Valeu !
ExcluirInteressante! Bartolomeu diz que foi naquela Kombi que você lhe ensinou a dirigir... E ele aprendeu?
ResponderExcluirAbraço, Baruto.
Antonio
Rapaz, sei não! Risos...
ExcluirNão. Até hj guia super mal. Assinado:a filha dele: fabiana
ExcluirQue texto lindo, João! Amei! Transportei-me pras idas e vindas, senti a Kombi, as paisagens... Que beleza é compartilhar desse modo literário, suave e simples, o já-vivido. Parabéns!!!!
ResponderExcluirValeu amiga, obrigado!
ExcluirUm texto poético para Kombi e seus ocupantes do dia-dia na rotina do deslocamento para trabalho ..Belo texto, Xará.
ResponderExcluirParabéns!!
Valeu Xará do Mato. Obrigado!
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