As 7 faces do preconceito

 

Abastecimento de ancoreta com água de cacimba no Ipanema.

Desde tempos remotos a Ribeira do Ipanema fora habitada pelos indígenas Fulni-ôs, desde a nascente à foz, considerando as melhores condições de subsistência. Rio intermitente de água salobra, em tempos de seca seu solo jamais se negou a fornecer água a quem cavou uma cacimba.

Meados do século XVIII, quando já havia arraial de mestiços, tropeiros e almocreves, as únicas fontes de abastecimento d’água eram o rio Ipanema, raros olhos d’água e barreiros de águas pluviais. No século XX surgiram as cisternas e o açude do riacho do bode, construído pelo DNOCS nos anos 50. O método mais simples e barato de transporte d’água as residências eram ancoretas nos lombos  dos jumentos guiados por seus tangedores. As duplas se multiplicaram e se popularizaram, dentre as quais se destacam “Candinho e o Jumento Mineiro” que aqui representam uma legião de heróis anônimos que contribuíram para o desenvolvimento dos sertões.

Dia a dia de abastecimento d'água

A CASAL iniciou construção do sistema adutor da bacia leiteira no primeiro semestre de 1964, foram desenvolvidas a partir de Belo Monte até Jacaré dos Homens. Este trecho de adutora foi concluído em abril de 1966 quando, depois de feitos os testes de operação, a água do Rio São Francisco chegava a Jacaré dos Homens. Este sistema passou a beneficiar também as cidades de Batalha, Belo Monte, Cacimbinhas, Jacaré dos Homens, Major Isidoro, Monteirópolis, Olho D’Água das Flores, São José da Tapera, São Marcos (na época, sede municipal) e Santana do Ipanema, cujo sistema foi inaugurado em 31.05.1966.

O dilema não se exauriu com o tempo. Pergunta-se: “É justo ou não que se preste consideração aos abnegados servidores sertanejos com esculturas em praça pública?”

“Depois de quatro séculos de serviços prestados nos sertões nordestinos, o jumento recebeu sua primeira homenagem: um monumento em praça pública, na entrada da cidade de Santana do Ipanema, em Alagoas. A honraria teve apoio de muitos e as restrições de alguns.

Inteligente, o jumento não pula obstáculos, contorna-os. O cavalo pula porque é burro.

Do livro “Ribeira do São Francisco” de M. Cavalcante Proença, edição de 1944, vol. LXXVI, da Biblioteca Militar, pág. 143, d.v., passo a transcrever o trecho seguinte:”

O jumento

“Dentre as coisas mais características do São Francisco, o jumento merece um lugar à parte. Muito mais sóbrio e resistente que o cavalo, desenvolve-se com facilidade na caatinga e presta hoje valiosos serviços como animal de carga e sela, varando as trilhas do sertão, minorando a escassez de transportes. 

“No século XIX foi proibido ter criação de jumentos; dizia-se que para não prejudicar a dos cavalos. O fato é que se o meio não pode impedir a sua proliferação, muito menos a proibição e, assim é que ele é um elemento de grande utilidade para os pequenos comerciantes que não têm posses para adquirir uma tropa de cavalos e muito menos de muares.

"Baixote e cabeçudo, o jumento é encontrado passeando nas ruas do povoado com ares de cidadão em dia com os deveres municipais.

“Agora, na força do sol, está de folga por algumas horas, mas logo havemos de encontrá-lo sob a cangalha, duas ancoretas por lado, baldeando água para as casas.

“Águas que os remediados compram e os pobres vão buscar em cabaças diretamente no rio.

“Perto do mercado vemos outros, reunidos em grupos silenciosos, na praça descansando da viagem; a cascaria pequenina, roída da aspereza dos caminhos, só pesado no lombo, até seis arrobas de carga. Além destes há jumentos de sela, passeiros, cômodos, para cortar estradas, mesmo que cadeiras de balanço.

"Jumento não refuga trabalho, uma vez acostumado a ele. Não gosta de viajar sozinho, mas, quando entropilhado, é o último que afrouxa. Fareja os atoleiros, desviando-se cauteloso, tem boa memória para caminhos e, quanto à comida, até casca de árvore lhe serve. Dizem mesmo que tira os espinhos do mandacaru com o casco, a fim de aproveitá-lo.

“Mas que ninguém provoque seu gênio, obrigando-o a tomar uma decisão porque, depois de tomada, não a modifica mais. Logo que empanca, não há fazê-lo prosseguir nem a mão de Deus Padre e, se insistir, acaba por deitar-se teimosamente. Quebraram-lhe o sabugo da cauda, fica lanhado de chute, aguenta torceduras de orelhas e não protesta nem se move; geme, se tanto. Quando a judiação é por demais selvagem, murcha as orelhas peludas, desce as pálpebras sobre os olhos mansos, sem rumor, mas inarredável. Último recurso para demovê-lo é a fogueira debaixo da barriga. Rescende o pelo chamuscado e o jumento caminha. Mas apenas o suficiente para se afastar das labaredas. E isso nem sempre.


Apologia ao jumento(O jumento é nosso irmão)
(José Clementino/Luiz Gonzaga)*
*José Clementino(1936-1965) era cearense de Várzea Alegre e
*Luiz Gonzaga(1912-1989) era pernambucano de Exu.

“Todavia o caboclo gosta dele, mau grado a maneira bárbara com que pretende impor-se à sua “natural” teimosia. Dá-lhe vários nomes, como telegrafista, jegue, burrico e lhe atribui honras de herói em histórias nas quais ele vence a onça em astúcia e em perseverança amorosa, na perseguição das éguas, horas e horas, num galopito curto, mas que vai longe. Como não sai das estradas para dar passagem aos caminhões, numa indiferença muito superior pelas buzinas, foi apelidado também de inspetor de veículos.

“Existe um conto que pretende explicar por que o zurro do jumento é tão característico. O jumento foi menino de família muito pobre, e andou na escola muito pouco tempo, tendo de sair para conseguir trabalho, embora fosse muito estudioso. Por isso não quer esquecer as vogais, única lição que aprendeu: “a, e, i, o, u ipsilone, psilone”. O Y é a mais difícil. Na base desta simpatia, não deixa de haver uma certa influência religiosa, considerando-se que, assim como se sabe que a galinha tem os pés cascorentos, porque ciscou a palha da cama do menino Deus, e a cabra é de boca maldita, porque comeu o capim do presépio, o jumento foi que carregou Nosso Senhor, com o filho no colo, que fugia para o Egito, devagarinho e com cuidado para não perturbar o sono da criança. E por isso é amado. E, também, porque faz serviços pesados, trabalha e sofre com aquele povo, resignadamente, modestamente...”

O jumento se presta a excelente padroeiro, diz o folclorista Câmara Cascudo(1898-1986). “Ele é teimoso, resistente, inesgotável, credor da gratidão nacional. Não há criatura mais simpática, modesta e generosa. É animal de profunda inteligência, raciocínio arguto, prodigioso instinto, nas fronteiras da genialidade.”

Com efeito, “os burros não são burros”, garantia o poeta Álvaro Moreira(1888-1964):

“Olhem os olhos dele

Que humildade

Que paciência

Que coragem

Pensam para dentro.”

 

Corrida de jumentos na tradicional festa da juventude

Outro poeta Mauro Mota(1911-1984), da Academia Brasileira de Letras, também o exaltou:

“Se tivesse de se erguer um monumento nas confluências dos sertões do Nordeste, em reconhecimento de serviços valiosos e contínuos prestados à região, mais do que qualquer grande do governo ou da política, um jumento de bronze deveria subir ao pedestal.”

“Estátua em praça pública, na entrada da cidade de Santana do Ipanema, nas alagoas, foi conquista máxima do jumento nosso-irmão, segundo o padre Antônio Vieira(1919-2003), fundador do Clube Mundial dos jumentos, após 400 anos de trabalhos nos sertões nordestinos. Mas essa homenagem ao camelo brasileiro custou muitas dores de cabeça a Adeildo Nepomuceno Marques, prefeito da cidade pela primeira vez, que enfrentou, no seu segundo mandato, até ameaça de cassação, por parte dos vereadores oposicionistas, e críticas da elite local, que preferia, no lugar do jegue, um filho da terra.”

“Vindo da palestina, após fracassar, em 1564, a experiência com 10 camelos no Rio Grande do Norte, o jumento deu certo e, bem adaptado, foi o mais forte amigo e ajudante do homem na construção e nos transportes nas regiões mais inóspitas. Hoje, transformado em monumento, homenageado em passeatas e em corridas, e ainda como personagem de novela na tevê, batizado com nome de gente importante (Rodrigues). O jegue é batizado de forma desordenada e impiedosa, sem qualquer preocupação da raça, e sua carne vendida às toneladas para o Japão, através de matadouros baianos.”

“Vamos dar valor a quem trabalha 

Vamos dar valor a quem dá murro,

O burro é quem merece uma medalha:

O burro é quem trabalha,

O burro é quem dá murro.”

 

 

“Mauro Mota, Tadeu Rocha, Pe. Antônio Vieira e Câmara Cascudo proclamam a resistência, a bondade e a genialidade do jumento.”

“Compositor e cantor de baião, Elino Julião(1936-2006) fez o disco do jumento, sucesso nos programas de boa audiência das rádios do interior. Everaldo Noia Rocha(1928-2008), vereador em Santana do Ipanema, pensa diferente: - “Fui e continuo contra, não da estátua do jumento como obra de arte, mas de sua oportunidade e do local onde foi situada.”

“Entende o líder oposicionista que o jegue merece uma lembrança, em “outra época, mas nunca na entrada da cidade”. Acusa ainda o prefeito de aplicar “verba astronômica” na obra, enquanto inúmeros logradouros permanecem abandonados.”

Pão-de-açucarense João Lisboa.
 Construtor da primeira escultura e do cristo de Pão de Açúcar

“O prefeito Adeildo Nepomuceno, que recebeu solidariedade de intelectuais de todo o país, se defende: “O monumento original, obra do escultor alagoano pão-de-açucarense João Lisboa(1900-1965), custou apenas Cr$ 6.200,99. Todo em cimento armado, é composto de jumento, cangalhas, ancoretas, arreios e tangedor.”

Amigos dos jegues

“Após lembrar a glorificação ao boi de carga pelo monumento "La Carreta”, de Montevidéu, o “Touro de Bronze” de Paris e o monumento às andorinhas, em Campinas, a professora Margarida Lopes de Almeida(1896-1979) lamentou, em carta ao político alagoano, que a estátua não fosse de bronze. Catedrática de escultura da Escola Nacional de Belas-Artes e filha da poetisa Júlia Lopes de Almeida(1862-1934), a professora Margarida mostrou-se surpresa diante da oposição a “ato de tanta justiça”, e afirmou que o amigo dos jegues “provou ser um bom, um justo e um poeta.”

“Diz o prefeito Adeildo Nepomuceno(1918-1978) que o seu amor aos jumentos tem seguidores também fora da poesia. Ao inaugurar o serviço de abastecimento d’água potável, a cidade de Pedro Afonso, em Goiás, aposentou os 80 jericos que até então transportavam água para a comunidade. E em Poço das Trincheiras houve acontecimento inédito: passeata de uma centena de jegues em solidariedade ao prefeito de Santana. Tangedores conduziam os animais pela rua principal, sob os aplausos da população agradecida. Depois disso, até capitais, como Salvador e Maceió, foram cenário de pitorescas corridas de jumentos.”

Estátua original construída por João Lisboa

“Para o escritor santanense Tadeu Rocha(1916-1994), o monumento erguido à entrada de Santana do Ipanema “constitui verdadeiro marco na evolução dos sertões, pois indica o fim da busca da água nas cacimbas cavadas nos leitos esturricados dos rios temporários”.

Bicho de sete fôlegos

“Pouco importa a pequena estatura do jumento, afirma o poeta Mauro Mota, defensor maior de bodes e jericos. “Ele suplanta o tamanho pela perfeita adaptação ao clima semiárido, inclusive na época das secas, quando a água se evapora totalmente na terra quente. Isso não deprime o jumento, nem reduz a capacidade de trabalho. Passo comedido, mas constante, conduz pesos enormes, anda léguas para chegar diante de uma cacimba ou as bordas de um açude, onde afoga a sede de muitas horas”.

Reconstrução do tangedor no monumento original

“É verdadeiro bicho de sete fôlegos, diz ainda Mauro Mota. Não precisa de pastos para viver, nem é consumidor de forragens que os fazendeiros previdentes acumulam para longas estiagens. Capim e farelos são iguarias de que se serve uma vez na vida. Alimenta-se do que encontrar; sabugos de milho, folhas secas, trapos de pano, trapos de papel, enchimento de velhas cangalhas, raízes de arbustos que exuma batendo os cascos nos tabuleiros rachados. Enfrenta estoicamente a fome, a sede e o excesso de cargas.”       

“Além de maior firmeza nos cascos em terrenos acidentados, conduz carga ou cavaleiro sem descanso por mais de 20 léguas, feito que nenhum cavalo alcança. Inteligente, em região pantanosa, ele encontra, sem que ninguém sugira, o caminho mais seguro da saída. O cavalo acua ou atola, se não tiver quem o guie pelas rédeas.”

“E mais, diz o sertanista João Américo Pereira(1926-2011): Prova inconteste da profunda inteligência do burro é que ele não pula obstáculos, contorna-os. O cavalo pula porque é burro.”

Vales ainda com lírios

“É preciso acabar com esse desprezo, ou com esse equívoco. Os burros não são burros. Podem ser teimosos, às vezes, às vezes podem ser maus. Quem nunca deu um coice, que atire nos burros a primeira pedra”.

“As palavras são do poeta Álvaro Moreira, que ainda disse: “Os jumentos guardam, no fundo da memória madrugadas, orvalhos, montes de átomos tranquilos, vales, ainda com lírios, a paz, a liberdade, a alegria. Se eu tivesse terras, água, cevadas, fenos, milhos, capins, entregaria tudo a eles, feliz: - Eis a boa natureza. Sejam burros à vontade.”

“Quem tomou essa providência foi o pioneiro Delmiro Gouveia(1863-1917), mandando soltar os bois e burros que transportaram equipamentos pesados da primeira usina hidrelétrica do Nordeste, em Paulo Afonso: “Estão todos aposentados. São também meus operários e irmãos. Que comam e durmam o resto da vida nas pastagens.”

Clubes dos jumentos

“Padre e ex-deputado, o cearense Antônio Vieira entende que a estátua ao jumento fez justiça aos maiores benfeitores dos sertões. Admirador do pequeno animal, fundou o Clube Mundial dos Jumentos, na cidade de Iguatu, Ceará, com 10 mandamentos obrigatórios para os associados:

I — reconhecer a própria burrice;

II — reconhecer que ainda pode aprender muita coisa;

III — evitar empáfia de dialeto;

IV — não ser aferrado aos seus pontos de vista;

V — aprender diariamente uma coisa;

VI — transmitir aos demais jumentos o que sabe, sem contornos de mestre ou superioridade;

VII — pedir e aceitar correções;

VIII — disposição esportiva para calar;

IX — cultivar a sociabilidade e a compreensão humana;

X — manter aceso o facho da alegria.”

 

             O logradouro público da estátua de “Jumento e Tangedor” enseja orgulho pra uns e desdém pra outros, fazendo perdurar polêmicas entre nativos-nativos e nativos-visitantes.

            Inicialmente foi instalado na Praça dos Coordenadas, no início da avenida dr. Arsênio Moreira, construída pelo prefeito Hélio Cabral de Vasconcelos (1956-1960), que passou a se chamar “Praça do Jumento” na gestão do prefeito Adeildo Nepomuceno Marques (1966-1970). Vândalos destruíram o tangedor nos anos 80.

Chegou a ser restaurado no mesmo local, mas na mesma década a praça foi totalmente demolida por exigência do DNER atual DNIT por representar perigo ao fluxo rodoviário da BR 316 que corta a cidade.

Após a demolição da praça o conjunto de esculturas foi removido para o pátio externo da estação rodoviária, porém durou pouco tempo sob protestos da população de que o local era inapropriado.

Por fim foi recolocado no início do canteiro central da avenida Dr. Otávio Cabral, nome de trecho urbano da BR 316, permanecendo até os dias atuais.

          

Monumento atual


 

Parte dos textos foram extraídos do livro “Santana do Ipanema conta sua história”, de Floro e Darci de Araújo Melo, Rio, 1976.

 

 

Setembro de 2021

Comentários

  1. O jumento é um herói. Já acompanhei pessoas que iam buscar água no rio Ipanema. Também lembro da inauguração da água em Santana do Ipanema. Era criança, mas lembro da festança que fazíamos...

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    1. Bartô, eu lembro do dia da chegada d'água: A torneira que só chegava até o pequeno jardim da nossa casa jorrava água barrenta, mas foi uma festa imensa.

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  2. Uma pesquisa muito bem elaborada sobre a utilização do Jumento na região do semiárido Nordestino.Homenagens prestadas ao animal e oposições sobre o ato no município de Santana do Ipanema Al.

    Parabéns, João de Liô, pelo belo trabalho.

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    1. Nosso grande poeta José Geraldo Wanderley Marques, obrigado!

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  4. Caro confrade, escritor João Neto Félix, está aqui na sua crônica, um tratado a respeito da discriminação histórica do homem sobre um animal, quadrupede, domesticado. Nas aulas que tive de zoologia na universidade, dizia: "Nome científico: Equus asinus, natural da África e Ásia" é o primo pobre do cavalo. Padre Vieira, Luiz Gonzaga e o prefeito Adeildo Nepomuceno Marques, a meu ver, foram os em vida enalteceram e deram o valor merecido ao "nosso irmão" o jumento. Parabéns, caro amigo por seu magnífico trabalho. Pode ter certeza, indicarei suas crônicas, aos meus alunos. ass: Fabio Campos.

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    1. Obrigado confrade Fábio Campos pela gentileza de suas palavras.

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