Essência carnavalesca

 

Naquela manhã de um dia comum andava pela rua quando avistei Ivaldo, que vinha rápido com a expressão tensa e esbaforida. Ao me reconhecer, aproximou-se e me interpelou:
- João, João, aqueles maloqueiros estão me chamando de “Cuiuiui”! Vou lascar a cabeça dele com esta pedra!
Então, sabedor de um pouco sua história tratei de acalmá-lo, dizendo:
- Calma, home, todo mundo sabe que você não é “Cuiuiui”! Deixe esses malandros pra lá. Ligue não! Todo mundo gosta de Ivaldo. Preste atenção: não volte por esse caminho. Vá por ali...
As frases faladas por mim eram imediatamente repetidas por ele e o acalmaram. Tende a repetir indefinidamente as falas momentâneas. É necessário entrecortar a conversação mudando de assunto para aliviar a tensão. Eu repeti a alcunha sem repercussão. Nos diálogos, a entoação das palavras faz toda diferença, seja com ele ou com qualquer outra pessoa.
Ivaldo chegou a frequentar a escola tradicional, contudo sua capacidade intelectual inferior o impediu de continuar. Por ser uma criança inquieta e agitada a escola não teve como atender suas necessidades especiais. Também nunca precisou de asilos.  Naquele tempo era comum falar de internamentos de pessoas com transtornos mentais com uso de eletrochoque ou coisa parecida.
Conheci-o nas andanças frequentes à casa dos padrinhos José Soares Campos (1924-1984) e dona Zefinha, Josefa Maria Soares Campos (1924-2016), circulando nas ruas adjacentes do bairro São Pedro.
Dona Carminha, sua mãe, criou os quatro filhos com muito sofrimento; lavando e engomando roupas como profissão para sustentar a família. Numa época em que ainda não havia água encanada, muitas vezes precisava sair na madrugada se deslocando aos pontos de lavagem com água de melhor qualidade no Riacho do Bode, longe da sua casa ou em trechos distantes do Rio Ipanema, na Maniçoba e Bebedouro, levando os filhos pequenos porque não tinha com quem deixar. Foi uma grande guerreira. Que Deus a tenha!
Não se sabe ao certo a causa da sua deficiência mental. A limitação de recursos da família dificultou assistência médica. Há casos semelhantes na família que reforça a probabilidade de hereditariedade.
Aos 73 anos sua capacidade mental se equipara a de uma criança, exceto se for provocado pela evocação sarcástica do nome vulgar. Drasticamente evoluiu em ser bravo e agressivo.
Conversando com a irmã Fátima sobre a origem do apelido, ela lembrou que ainda criança ele gostava de “uiui” nome popular de mucunzá ainda em voga no sertão. Sua dificuldade e acomodação na pronúncia do vocábulo gerou uma corruptela fonética que se transformou na odiada alcunha. E menino é mestre em utilizar apelidos provocativos ainda que corra o risco de provocar uma briga. Popularizou, não teve jeito!
O irritava o gesto de simular binóculos com as mãos, como se fosse observar avião imaginário, porém foi superado com o tempo.
Ivaldo é pessoa querida e respeitada pelos santanenses. Infelizmente, um ou outro insiste em agitá-lo! Entretanto, deve-se desestimular pois é possível que movido por surto de agressividade possa machucar alguém. Quando se acalma sai em peregrinação pelas ruas a dizer aos quatros cantos e a qualquer pessoa o motivo da sua ira.

Contentamo-nos em ironizar o aperreio alheio, por quê? Será que é a autossuficiência da tolice humana? Há formas lúdicas de abordagem para criar momento de descontração, como por exemplo cantar trecho de música trocando palavras pelo cognome. E é curioso porque nesse contexto ele se diverte.
Diz o professor Marcello Fausto que plagiou a música do cancioneiro infantil “Sapo Jururu” para homenageá-lo. Ele ouviu e gostou:
 
“Valdo Cuiuiui
Da beira do rio
Só come cuscuz se for pelo funil
Valdo Cuiuiui
Da beira do rio
Só come cuscuz com leite da Camil”
 
Há muito tempo Carlos Soares o azucrinou. Sabedor da consequência, foi ameaçado com um paralelepípedo. Em seu favor interveio o irmão José Antônio dizendo que iria contar a sua madrinha, dona Zefinha. Imediatamente ele desistiu da ação, desconversou e saiu.
No decorrer do tempo desenvolveu paixão desmedida pelo carnaval influenciado pelos “Caretas”, tradicional bloco da cidade. A memorização de data do próximo evento carnavalesco é o principal assunto quando encontra alguém no caminho, enfatizando o momento tão esperado. Tem cuidado em saber na ponta da língua os anos bissextos, fato que defende com insistência, tudo para exaltar o carnaval que se aproxima.
Pessoa de extrema confiança até os dias atuais continua fazendo mandados de várias famílias, como ir à padaria, comprar mantimentos ou pagar contas. Seu lazer é se relacionar, conversar com um e com outro; rua acima, rua abaixo, falando com entusiasmo das datas festivas que lhe importam. E, claro, das reclamações de quem o provoca.

Fátima alegou que sua aparência descuidada não se trata de omissão ou por falta de recursos, visto que ele recebe benefício social, mas pela teimosia em não querer fazer seu asseio diário, nem aceitar interferências. Ao contrário, ameaça agredir quem tenta insistir no assunto. Argumentou também que depois de uma abalroada de motocicleta há uns 8 anos na Praça da Bandeira, sofreu um leve AVC-Acidente Vascular Cerebral e cegou de um olho, desprezando ainda mais a higiene pessoal.


  Ivaldo é figura popular da história santanense que merece atenção e cuidado dos conterrâneos. Apelamos: acolham-no! Acalentem-no, pois diferente de nós nunca deixou de ser criança. De tão longe muitos nem sabem mais o que significa. Busquemos, sem exceções, um traduzir-se contínuo que apresente a melhor versão dos muitos “eus” em constante aperfeiçoamento para se viver melhor.


Deixo aqui uma “Canção Amiga” (clique para assistir)de Carlos Drummond de Andrade, porque sou escritor precário e ainda não aprendi as palavras que lhe faça compreender uma poesia de “acordar os homens e adormecer as crianças”.  Ou quem sabe, desnudemo-nos da “Máscara Negra”(clique para assistir) (Zé Keti e Hildebrando Matos, 1967) para que a alegria da festa momesca seja vivida intensamente o ano todo para extravasar no vindouro reinado festivo.
 
Eu preparo uma canção
Em que minha mãe se reconheça
Todas as mães se reconheçam
E que fale como dois olhos
 
Caminho por uma rua
Que passa em muitos países
Se não me veem, eu vejo
E saúdo velhos amigos
 
Eu distribuo um segredo
Como quem ama ou sorri
No jeito mais natural
Dois carinhos se procuram
 
Minha vida, nossas vidas
Formam um só diamante
Aprendi novas palavras
E tornei outras mais belas
 
Eu preparo uma canção
Que faça acordar os homens
E adormecer as crianças

 

                                            Professor Marcello André Fausto de Souza e João Neto Felix Mendes

                                                                                                                                                                                  Agosto de 2021

 P.S-Ivaldo Pereira de Aquino é filho de Domício Francelino Aquino (1925-2021) e Maria do Carmo Pereira (1927-2021) nascido em 21.04.1948. São seus irmãos: Ivanildo, Fátima e Ivonice.


O cronista e Ivaldo em 2015


Marcelo, filho de Brito, Ivaldo e Thiaguinho. Carnaval de 2020


Ivaldo conversando na rua




Comentários

  1. Lembrei dele, João...bem escrito. Fiz uma viagem ao passado

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  2. Que belo texto meu amigo, recomendo a leitura a todo santanense. Lembro-me que certa vez o senhor Vicente, da banca de revista, entregou uma quantia vultosa a Ivaldo, recomendando cuidado. Achei curioso e na minha inocência juvenil perguntei:
    -Não achas perigoso, tens realmente confiança?
    -So é perigo se alguém tomar dele, porém a ele entrego até ouro em pó!

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    1. Obrigado. Conversando com a irmã de Ivaldo ela me disse isso mesmo.

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  3. 👏👏👏👏👏👏👏

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  4. Bom dia Xará!
    Que belo texto...Parabéns...
    Por vezes esquecemos dessas figuras e você, com maestria, reavivar nossas memórias.
    Abraço

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    1. Valeu Xará. Obrigado. Temos muitos personagens folclóricos.

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  5. Mais um excelente resgate de personagem que, por ter uma situação diferenciada, às vezes cai no anonimato. Que bom que você o tenha resgatado, para torná-lo sempre presente, e com sua devida importância.

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  6. João, q bom vc ter escrito sobre Ivaldo. Linda homenagem a um patrimônio santanense! O conheço desde q eu era criança e até hj, apesar de vê-lo raramente e quando vou a Santana, ele nunca esqueceu meu nome. No dia de seu acidente, eu estava na praça e presenciei o ocorrido. Minha mãe foi uma das melhores amigas de Dona Carminha e sentiu muito o seu falecimento. Ele sempre teve passagem livre lá em casa, até para ir até a cozinha e, em várias oportunidades, tomar um cafezinho com bolo q minha mãe fazia.

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    1. Júnior, Ivaldo está muito presente na história santanense. Outro dia, estive em Santana e dei uma carona a Luiz Euclides. Ficamos conversando um pouco. Ivaldo ia passando e veio aonde estávamos. Ele não lembrou de mim de pronto. Ficamos conversando aqueles mesmos temas e aí eu disse: -Ivaldo, não acredito que você se esqueceu de mim!!! Imediatamente ele disse: É João de Seu Liô!

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  7. É uma 'criança ' que merece todo o carinho e respeito dos demais. Parabéns pelo texto!

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  8. Estou aqui morrendo de saudades de Santana
    ....preciso voltar ao meu torrão....que saudade...lembro sim dele. Uma graça.
    Obrigada a vcs pelas viagens ao passado que nos proporcionam...maravilha!!!

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  9. Linda lembrança, linda crônica.

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