Juazeiro do Norte, Vale do Cariri, 30.11.1970. Centenário de ordenação do padre Cícero Romão Batista. A cidade estava em festa. O movimento de pessoas era intenso. Nas ruas, o assunto era o Padre Cícero; seus milagres, sua bondade, enfim, tudo o que se referia a sua vida. Estátuas, colares com suas medalhas, tendo no verso a padroeira Nossa Senhora das Dores. Pelos quatro cantos só se via publicações falando do padre. Os poetas e contadores de histórias da literatura de cordel exibiam exemplares, oferecendo aos transeuntes insistentemente. Enfim, tudo transformado em arte no comércio efervescente. O padre era cantado em verso e prosa e os livrinhos iam passando de mão em mão. O jipe willys, de quatro portas, “bernardão” tinha feito o longo percurso de Santana a Juazeiro do Norte. Agora, esfriava o motor. A delegação alagoana estava entusiasmada com a viagem: Seu Liô, esposa e o filho menor e a família do motorista; mestre Adolfo Santos, compadre, serralheiro, saxofonista e sua esposa, com filho de colo. Embora cansativa, a viagem tinha sido tranquila. Não havia tempo a perder. A cidade era só festividade. O mestre Adolfo, era amigo de Seu Liô de longa data, quando ainda morava em Batalha. Natural de Belo Monte, às margens do Rio São Francisco, de tradicional família de músicos. Era irmão de Luiz Saraiva Santos(1929-1982), conhecido como “Saraiva”, saxofonista e compositor. (Clique e conheça)Migrou com a família para São Paulo ainda na infância. Após uma breve carreira no exército, Saraiva ingressou na Companhia Docas de Santos e alternou uma carreira de auxiliar de caldeireiro com a de músico nas boates da cidade de Santos. Ao longo de sua carreira gravou dezenas de discos de samba, choro e bolero, entre outros gêneros. Mestre Adolfo, morava em Cacimbinhas. Além de serralheiro, mantinha uma pequena banda musical de metais formada por amigos e familiares que eventualmente se apresentava em festas e celebrações religiosas. A banda animou várias procissões nas festividades a Senhora Santana a pedido do amigo Liô. Romeiros, curiosos e oportunistas chegavam a Juazeiro de todos os lugares. E, por isso mesmo, por precaução, os cuidados com os pertences pessoais mereciam atenção especial. Liô, exaltava sua sensibilidade e percepção com inexorável firmeza contra quaisquer investidas de malandros. Detestava andar sem algum dinheiro para eventual emergência ainda que alguns parcos cruzeiros no bolso da folgada calça de linho branco que solenemente usava naquele dia especial. - Dizia sempre: tenha sempre um cruzeiro no bolso que lhe ajudará a se safar de situação adversa. Após breve descanso as famílias se integraram às festividades locais começando com as visitações ao horto da estátua do padre Cícero, museu, culminando na praça defronte à igreja de Nossa Senhora das Dores, local oficial das celebrações. Quando se acomodaram na praça da matriz, Seu Liô, pelo tato, conferiu suas coisas e, em seguida exclamou enfaticamente: - Eita brocota*, fui roubado!!! Ah, ladrão filho de uma égua!! - Falou alto: Compadre Adolfo, roubaram-me! Como pode uma coisa dessa? Como eu não percebi? Valei-me meu padim Ciço!! Indignado, não falava em outra coisa. Não havia como saber onde havia ocorrido o furto, pois tinham frequentado vários ambientes cheios de gente. Procurou uma delegacia próxima, mas foi orientado a ignorar o fato pela insignificância do valor subtraído. A contragosto, acatou a recomendação, mas não parou de resmungar! Foto: Centenário da ordenação sacerdotal do padre Cícero. Juazeiro do Norte CE Fonte: Revista O Cruzeiro, Ed. 51, 1970 Em Juazeiro, subindo a Avenida Padre Cícero, uma rua estreita, chega-se à Igreja de Nossa Senhora das Dores, a santa venerada pelo padre Cícero. Um altar improvisado no patamar serviu de palco para a maior festa religiosa do país. Trinta padres concelebraram a missa em homenagem ao centenário de ordenação do patriarca de Juazeiro. Mais de 50 mil pessoas ocuparam os arredores. Romeiros e pessoas piedosas, muitos sem condições de andar, foram levadas, todos com um só objetivo: a fé no Padre Cícero. O padre Murilo de Sá Barreto, vigário da cidade à época, dirigiu a palavra ao povo: - Senhores, estamos aqui para celebrar mais um ato de pura liturgia, em homenagem ao nosso irmão Cícero. Não se trata de fanatismo. Não queremos fugir ao que manda o evangelho de Cristo. Essa missa de ação de graças está dentro das normas da igreja. Prosseguiu: - Padre Cícero foi fé, caridade e um grande pastor de Cristo. Inteligente, versátil, sem dúvida, um grande líder da Igreja. Esta homenagem do povo de Deus e de irmãos do sacerdócio é um reconhecimento da grande obra que ele prestou aos nordestinos e ao Brasil. Não podemos, jamais, esquecer a sua memória, porque estaríamos negando tudo aquilo que a igreja de Deus prega. Foto: Esposa do mestre Adolfo com filho Fonte: Revista O Cruzeiro, Ed.51, 1970 Aquele padre de palavra fácil, que estava representando seus colegas, era a palavra oficial da igreja. Quando acabou de fazer uma retrospectiva da vida do padre Cícero, sempre recheada de elogios, o povo sentiu um alívio. Nunca tinham assistido a uma cena daquelas. De certa forma, a Igreja sempre ficou ausente das homenagens ao padre Cícero. - Falou ainda: Não é verdade! Nós não podíamos, sem reações religiosas, prestar homenagens ao padre Cícero. Ele, de fato, nunca foi vigário de Juazeiro. Sua paróquia era Caririaçu, uma cidade próxima. Falou ainda da exploração política que sempre fizeram do nome do padre. A viagem tinha trazido a oportunidade de participar do momento histórico das solenidades festivas em homenagem ao padre Cícero, mas também a grande lição de que não se pode confiar cegamente nos sentidos. Ninguém está a salvo do sabor amargo e travoso das frustrações. Quando menos se espera, a vida nos surpreende. Seu Liô continuou falando com insistência no furto e como tinha sido enganado. Depois o assunto virou gozação e motivos de muitas risadas na viagem de volta, porém sempre repetindo o jargão: - Ah, filho de uma égua!!! Depois que a revista semanal “O Cruzeiro” publicou a reportagem do evento, identificamos que tanto a esposa de Liô, dona Anasília, tinha sido fotografada no meio da multidão, bem como a esposa do mestre Adolfo, com o filho no colo em momento de oração. |
Multidão na praça da Igreja de N Sra das Dores, Juazeiro do Norte CE. Centenário da ordenação sacerdotal do padre Cícero Romão Batista Fonte: Revista O Cruzeiro, ed. 51, 1970 |
*termo
inexistente no vocabulário. Ele o criou e usava em situações jocosas ou de
espanto.
Março de 2021
Fonte de referência: Exemplar pessoal da revista semanal “O Cruzeiro”, Ed. 51, 1970.
Mais um resgate interessante, João, das histórias sertanejas deste Nordestão de Deus, agora envolvendo a figura mítica do Padre Cícero. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado Hayton pela leitura e comentário.
Excluir👏👏👏
ResponderExcluirFernando, obrigado pela leitura e manifestação!
ExcluirParabéns pela bela história. Visitar o Juazeiro do Norte é motivo de imensa alegria para os admiradores do padre Cícero. Contudo, assim como em outras cidades turísticas, faz-se necessário que tenham cuidados especiais com os oportunistas (os filhos de uma égua).
ResponderExcluirObrigado Oliveira pela leitura e opinião.
ExcluirPadre Cícero "Romão" Batista, a história de sua vida confunde-se com a do também tido como santo pelo povo nordestino, frei Damião. Sua fama é parecida com a de Lampião. Claro, seguiram caminhos inversamente antagonista, um pra o bem o outro pro mal. Viraram todos eles personagens lendários, como o cronista/blogueiro bem frisou: reclamados em prosa e verso, em livretos de cordéis e quiçá trabalho de mestrado e doutorado. ass. Fabio Campos.
ResponderExcluirObrigado confrade Fábio Campos pela leitura e comentário.
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