Seu Liô na festa do Jorge

 


                     
Liô era apelido de Leuzinger da Rocha Mendes(1918-1985), filho de João Mendes do Nascimento e Maria José da Rocha, santanense do distrito de Sertãozinho de Baixo, atual cidade de Major Izidoro. Deficiente visual desde os seis anos de idade aprendera a conviver com ousadia sua limitação que nunca chegou a ser empecilho aos desafios que a vida lhe reservou.

Além de artista como profissão, era homem que não perdia oportunidades. Fazia de tudo um pouco para sustentar sua família com a parceria da esposa. Algo curioso nos chamava atenção: A paixão pelo tempo e os relógios. A partir dos modelos de parede que pudesse tocar e sentir o seu funcionamento e tentar pequenos consertos. Anos a fio subiu dezenas de degraus das escadas de madeira até chegar à máquina do relógio que fica no penúltimo estágio da torre da Igreja Matriz de Senhora Santana para dar corda semanal e fazer reparos triviais.

Multi-instrumentista, tocava harmônio, grande gaita de armário cujo fole era acionado por pedaleiras. O instrumento foi comum nas Igrejas de Major Izidoro, Olivença e na Igreja Matriz de Senhora Santana. Foi tocando no coro da igreja de Santo Antônio de Major Izidoro que conheceu sua futura esposa. No grupo de seresteiros de Major Izidoro tocava cavaquinho, em companhia do Tio Antônio Mendes do Nascimento (1920-2001), de saudosa memória, que era virtuoso violonista.

Não chegou a se alfabetizar formalmente. Segundo Maria do Carmo dos Praseres Soares, filha de Antônio Vieira dos Prazeres, compadre de Liô e comerciante de Olivença e posteriormente em Santana, ministrou aulas de alfabetização na venda para o aluno interessado em aprender.

Conforme depoimento de Antônio Vieira dos Prazeres(1930-2014), seu compadre e amigo em seu livro "Minhas Memórias", de 2013, faz o seguinte relato: "A igreja de Nossa Senhora do Carmo se encontrava em estado deplorável, não tinha sequer forro, mas os ricaços de lá não tinham o cuidado de fazer uma reforma. Então, eu e o compadre Liô, que era músico da igreja, resolvemos fazer uma campanha para arrecadar fundos para fazer o forro. Isso ocorreu em 1965. Combinamos com o Padre Cirilo, que era o pároco da Igreja de Santana do Ipanema. Ele concordou e nos deu todo o apoio. Fizemos de tudo para arrecadar dinheiro com a população e fomos até Capelinha e Major Izidoro, onde muita gente ajudou. Com os recursos fizemos a compra da madeira e dos materiais que eram necessários e padre Cirilo ajudando, foi ele quem arranjou o mestre de obras."


Usava sua perspicácia como jogador de dominó! Outro dia, numa conversa de amigos foi contado que nos jogos noturnos no bar de Erasmo, num determinado momento os jogadores emudeceram. Liô estranhando o silêncio, interpelou-os:

- Oxente, o que houve? Todo mundo calado!!!???

- Alguém respondeu: Seu Liô, faltou energia!!!!

- Ele respondeu com sagacidade: E eu com isso??? Vamos jogar!!! A risada foi geral.

Teve a ideia de criar negócio de prestação de serviços elétricos e de alto-falante nas comunidades rurais nas épocas dos festejos religiosos. O serviço volante era composto de grupo gerador com motor a diesel, gerador, gambiarras e serviço de som para transmissão das celebrações e animação da comunidade, tocando músicas encomendadas pelos ouvintes para as musas inspiradoras.

Nos dias dos eventos sua casa virava um pandemônio. Era um corre-corre pra lá e pra cá. Pega isso, pega aquilo! Cuidado para esquecer tal coisa. A equipe era composta por Seu Liô, um assistente eletricista e um de seus filhos, na primeira fase. Depois, quando os filhos não puderam mais acompanhá-lo, fora contratado mais um auxiliar. Aos poucos, o negócio cresceu e a atividade se consolidou, sendo referência na região.

Essa história se passou no Povoado Jorge, comunidade rural remanescente de quilombolas do Município de Poço Trincheiras, limítrofe com Santana, que anualmente celebra as festividades em honra ao seu padroeiro, São José. Uma escritura antiga de venda de terras nas imediações da Ribeira do Ipanema (Santana do Ipanema), datada de 19 de março de 1771, de João Carlos de Melo e Martinho Vieira Rego, faz referência a Tapera do Jorge, atualmente pertencente ao município de Poço das Trincheiras. Este registro ilustra quão tradicional é a comunidade.

Liô fora contratado para abrilhantar mais uma edição do evento. Ao chegar na comunidade foram instalados todos os apetrechos: motor, gambiarras e serviços de som. Todo o aparato já estava pronto para avivar os festejos. Era muita gente animada desfilando na rua. O serviço de recados e pedido de música já estava funcionado com muitas solicitações. Cobrava-se uma taxa a cada solicitação. Havia também o serviço “expresso” com pagamento diferenciado para os clientes mais apressados e que queriam furar a fila. Num dado momento, chegou um cidadão e perguntou a Seu Liô:

- Será que minha irmã em São Paulo vai ouvir a música?

- Seu Liô respondeu, de pronto:

- Se ela estiver com o rádio ligado, ouvirá sim!

No segundo dia da festa, o filho Luiz Daniel que morava em Petrolândia, havia chegado para visita à família. Aproveitou a oportunidade e se dirigiu ao povoado no jipe em que andava para surpreendê-lo na festa. Levou consigo dona Anazília para compartilhar o passeio.

Chegaram ao povoado ao entardecer. Foram ao estúdio do serviço de som e nada do homem. Como o povoado é pequeno, perceberam uma aglomeração e se dirigiram para o local. Numa garagem improvisada de sala de reboco o forró estava animado e não deixava ninguém parado com as presenças das principais figuras da comunidade, incluindo o prefeito José Medeiros. Quando entraram no ambiente Seu Liô exibia trejeitos de exímio forrozeiro. E aí foi só alegria! A família se juntou e aproveitaram o restante da festa. E viva São José !

Janeiro, 2008

                

Comentários

  1. Antonio Sobrinho
    Bom dia, Sinhô
    Essa história eu lembro com outro epílogo. Estou enganado ou seu Liô foi flagrado se esfregando com uma festeira dançarina?

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  2. Comentário acima é de Antonio Sobrinho, que não sabre se identificar nesse parangolé

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  3. Que massa,que história linda, meu avô, um grande homem

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    1. Não tenha dúvida! Grandes personagens da nossa história.

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  4. Muito legal. Eu nunca conseguia acreditar como ele consertava o relógio da igreja. Foi uma pessoa admirável

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    1. Bartô, claro que eram pequenos consertos. Mas, mesmo assim, merece registro. Obrigado. Valeu!

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  5. Muito bom@👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽

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  6. É maravilhoso saber dessas histórias ❤️👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

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  7. Esta Crônica, vem consolidar fatos reais já citados em outras ocasiões. Enaltecer a figura do homenageado, Seu Liô é bastante digna de elogios. É sempre bom ver, até onde a capacidade de superação pode nos levar. E pensar que às vezes, nosso espírito quer se deixar abater diante de obstáculos tão pequenos. Então, ao ler relatos tão cheios de exemplos de superação S. Só enche-nos de fé e esperança. Fabio Campos.

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    1. Obrigado confrade Fábio Campos pela gentileza das suas palavras.

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  8. Conheci Seu Liô em vida e posso atestar todas essas suas habilidade , perspicácia e façanhas..

    Era o homem dos sete instrumentos.

    Parabéns,Xará

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  9. Seu Liô foi um homem incrível, querido e conhecido por todos os santanenses e adjacências. Ainda lembro, quando trabalhava na Farmácia Vera Cruz, ele passava em frente e bradava, "bom dia, seu Alberto..." e todos ficavam olhando um pro outro admirados, sempre! Tb o vi várias vezes na bodega d3 seu Carrito, sentado em prosa com vários amigos.

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    1. Valeu Júnior. Obrigado pela leitura e comentário.

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