Foto: Vilma Rodrigues |
Era o mês de junho. Fazia frio após um dia de chuva. A festa de São Pedro agitava o bairro. De casa eu ouvia o serviço de alto-falante do parque de diversões Ipanema a tocar a canção “Menina da Ladeira”,(Ouça) sucesso do cantor João Só (1943-1992). O crepúsculo vespertino vergava-se a imperiosa iminência da noite invernosa. A roda gigante girava suavemente com suas cadeiras oscilantes e vazias. Meninos de olhos arregalados e sem dinheiro queriam ocupar os bancos e girar sem parar, se pudessem. Atormentar o controlador até que cedesse era a única opção de diversão, antes da chegada dos endinheirados.
Os sinos dobravam por céticos e crentes. O padre Cirilo já estava a caminho. Seu Narcísio “Gaia”, Carrito, Manoel Melo e Antônio Dantas; líderes e entusiastas da festa conferiam com esmero os detalhes da noite. Durante o novenário às 6 horas, ao meio-dia e às 18 horas espocavam foguetes artesanais feitos e lançados aos céus por Zuza Fogueteiro, exaltando o Santo Padroeiro. Por ironia do destino, outrora a missão fora de Dionísio Fogueteiro, marido de Vicência, morador do bairro que morrera vítima da explosão da casa onde produzia os fogos de artifício.
A cerração quase não deixava ver a miúda estátua do Cristo de braços abertos no serrote mesmo com a fraca iluminação que o destacava. O tênue facho cintilante no serrote era como um farol, sinal de alerta e proteção dos perigos reinantes do mundo dos viventes. O brilho distante da luz difusa irradiava raios coloridos que eu não sabia de onde vinha. Pareciam ser os contrastes da luz com as gotículas d’água da neblina da quadra chuvosa.
Quando eu cheguei à praça a novena estava se encerrando. Ainda no terraço da capela encontrei o Padre Cirilo que me cobrou presença na novena nos dias seguintes. Encontrei Seu Carrito (Carlos Gabriel da Silva,1923-2011) e dona Quininha (Maria Joaquina de Lima e Silva,1927-2018) que já iam pra casa, do outro lado da praça, acenaram-me e me convidaram para visitá-los em seguida.
A barraca da quermesse estava cheia e agitada. Como estava sendo um ano de bom inverno com fartura de milho verde, muitas iguarias do vegetal estavam à venda para ajudar nas despesas na festa: milho cozinhado, bolos de milho, pamonha, canjica e mucunzá e outros acepipes.
Meninos e meninas aperreavam querendo um pouco de tudo. Sob o olhar carinhoso dos pais a meninada se divertia na roda gigante e nos barcos.
Eu me dirigi ao pavilhão da horripilante mulher-gorila: a monga. Claro que se sabia que era um truque de ilusionismo, com luzes e espelhos produzindo efeito visual de metamorfose, conferindo aparência translúcida e sinistra. Eram instantes assustadores. E no auge do espetáculo quando a mutação estava finalizada, os urros e pisoteados sinistros se aceleravam agravados pelo tablado barulhento, o perigo e os pensamentos medonhos disparavam o coração. Em seguida, quando as grades que a prendiam eram abertas, simulando fuga em direção ao público; era um alvoroço e correria em direção à porta de saída. Não ficava uma só pessoa na barraca. A encenação terminava com os espectadores amedrontados no meio da rua. Agonia e algazarra ao mesmo tempo.
Fui à casa de Seu Carrito conversar um pouco com os amigos que lá se encontravam e tagarelavam exaltados: Dotinha, Elgídio, Anízio, Marcelo, Luiz e Manoel Euclides, Ângela, Aparecida, Gilvânia e Valter. Entre uma conversa e outra o bazar anunciou que faria desafio “qual é a música?”, valendo cartelas para os prêmios da noite. Fiquei entusiasmado querendo participar. O bazar fazia parte do tradicional parque de diversões do empresário santanense Moacir Aquino que levava diversão às festividades religiosas.
Convidei-os para me acompanharem ao bazar pois eu arriscaria alguns palpites na tentativa de ganhar algumas cartelas. Acertei a maioria dos desafios.
Por fim, veio o momento principal da noite. Se acertasse aquela todos que estavam comigo ganhariam uma cartela para a rodada de encerramento. Então alardei: toca! Propositalmente ele buscou a canção mais difícil e menos tocada para embaraçar o desafiante.
Embora já soubesse o nome da canção, deixei-a tocar o tempo máximo permitido, dando a entender que não sabia seu título e fazer suspense. Após alguns instantes de brincadeira com o animador disse-lhe que iria responder.
- Ele ficou me provocando: Você não sabe!
Entre um diálogo e outro ele aumentava o volume da melodia instrumental. O nível realmente era difícil.
- Disse que sabia e respondi: “O homem do braço de ouro”
- Boquiaberto e entusiasmado ele respondeu: Resposta certa!!
Foi uma gritaria e gestos de vitória. Ganhamos as cartelas para o bingo. No fim das contas ninguém conseguiu completar a cartela do prêmio principal.
“O Homem do Braço de Ouro” (Ouça) é um filme estadunidense de 1955. O filme é famoso por possuir uma das trilhas sonoras mais famosas da história do cinema, composta por Elmer Bernstein no estilo jazz, que acompanha os letreiros de abertura do lendário designer Saul Bass. O filme conta a história do "homem do braço de ouro", chamado assim por ser um grande baterista e crupiê, manuseando com maestria o baralho.
A banda brasileira “Os incríveis” lançou uma coletânea dos seus maiores sucessos. Em 1978 o disco fazia muito sucesso e tinha uma faixa da melodia. Por coincidência, na residência do casal Hamilton e Terezinha Amaral, nas imediações, esse elepê era muito tocado e eu já tinha ouvido algumas vezes.
A noite esfriava ainda mais. Receoso que o sereno provocasse um resfriado, decidi ir embora. No caminho, voltei meu olhar para o ponto culminante da serra das micro-ondas. Eu gostava de admirar aquela elevação em dias de chuva. Parte de mim estava aqui, outra parte estava lá. Como somos um, comecei a contemplar a paisagem noturna da cidade a adormecer, adornada por uma nuvem de pirilampos errantes, faiscando e desaparecendo no breu. Era como um manto encantado que acalentava os sonhos do povo que adormecia. Um facho de esperança iluminou minha noite. Somente saindo de mim posso ver a mim mesmo e a cidade na escuridão da noite.
Legal, muito legal. Boas lembranças.
ResponderExcluirBartô, obrigado pela leitura e comentário.
ExcluirLegal, muito legal. Boas lembranças
ResponderExcluirValeu!
ExcluirConfesso que não conhecia a música “O menino do braço de ouro”. Bem apropriada à trilha sonora de filmes de ação, é natural que lhe desperte boas memórias.
ResponderExcluirA propósito, não sei quais dos sentidos mais nos aguça a memória: audição, olfato, visão. Ou será tudo junto e misturado?
Acredito que seja tudo junto e misturado porque a memória tem olfato. Valeu!
ExcluirJoão Neto continua fazendo História escondida em suas deliciosas crônicas e reminiscências. Que bom. Mas sinhô, como não entendo de música (entendo de alguma coisa, meu Deus!) prefiro a Menina da Ladeira. A outra pode ser famosa mas a Menina é mais tinhosa.
ResponderExcluirAbraços, mano velho
Obrigado pela sua participação neste espaço. Quando um texto provoca reflexão é porque está cumprindo sua missão.
ExcluirMas esqueci de me identificar, o que é de bom tom mas desnecessário para João.
ResponderExcluirAntônio Sobrinho
Valeu, velho Cupim.
ExcluirQue bela viagem ao passado. Vamos lendo e flutuando na trilha musical bem escolhida para a narrativa.
ResponderExcluirFernando, obrigado pela presença assídua e comentários.
ExcluirTenho que concordar com todos os comentários, anteriores. Enfatizando para o que prefere a canção "Menina da Ladeira" essa música, eu achava, não sei porque, que fosse do saudoso Agepê, que meu pai agente 007João Soares curtia bastante. Inclusive uma música que dizia: "Moro onde não mora ninguém..." A respeito do "Homem do braço de ouro" após ouvir, eu jurava que fosse de um filme do . Mas que foram brilhantes reminiscências, isso foram sim. Parabéns caro amigo, João Neto.
ResponderExcluirass. Fabio Campos
Obrigado confrade Fábio Campos. A canção "Moro onde não moro ninguém", ( Canário/Agepê) foi sucesso na voz de Antônio Gilson Porfírio (1943-1955), Carioca, mais conhecido como AGP, iniciais do seu nome, Agepê. Criativo, né? Antes da fama, trabalhou como transportador de bagagem onde era conhecido como Ripinha e também foi técnico projetista da extinta TELERJ, a que abandonaria para se dedicar à carreira artística. A carreira fonográfica teve início em 1975 quando lançou o compacto com a canção "Moro onde não mora ninguém", primeiro sucesso dele, que seria regravada posteriormente por Wando. (wikipédia).
ExcluirPesquisando aqui descobri que o parceiro na composição "Canário" era o apelido de Verner Raimundo de Macedo, natural de Coruripe AL.
Como e bom ler os seus escritos, Xará!!
ResponderExcluirHoje revivi as novenas de São Pedro e muito conterrâneos marcantes daquele bairro. E também o Serrote Pelado com o Cristo e a Torre da Micronda lá erguidos..
Parabéns, João de Liô, por mais essa..
Obrigado Xará , seus comentários são valiosos!
ExcluirDurante todo esse tempo que tem escrito suas crônicas, e me enviado como muito carinho, sempre tenho que volta ao tempo para me inserir no contexto, mesmo em descrição da qual não vivi. Pra mim, é uma grande virtude quando alguém com maestria e destreza consegue transformar letras em palavras e as palavras em emoções. E o que admiro mais ainda, é que o tempo permitiu que você lapidar-se na arte de escrever. Que continue a nos encher de lembranças prazerosas.
ResponderExcluirParabéns, compadre João.
Obrigado pela delicadeza das suas palavras, meu compadre. Viver é um grande dom que nos transforma dia após dia. O exercício diário nos proporciona possibilidades de novos aprendizados. Escrever é resultado de tentativas, erros, refazimentos e contentamento. Ciclos que se encerram e se reiniciam.
ExcluirJoão Neto, lembro de vc sempre muito simpático, gentil, educado. O Elgídio me envia sempre seus escritos e me delicio em lembranças que não vivenciei. Uma Santana que não explorei. Se pudesse voltar atrás...e vc me proporciona essa possibilidade nas lembranças que desperta em nós. Adoro ler suas crônicas. Gratidão e grande abraço.
ResponderExcluirEita, que legal. Sinto-me lisonjeado em contribuo para você não perca o elo das boas lembranças. Obrigado.
ExcluirQuis dizer "contribuir"...
ExcluirAh! Me identificando, me chamo zilma Nepomuceno, filha de Josias e Coralia, irmã de João.
ResponderExcluirVim morar aqui no Recife em 79. Portanto, acho que não lembra de mim 😔. Outro abraço.
Conheci parte da família: Lembro de Seu Josias, João e outros membros. Às vezes, a falta de convivência e interação faz a gente não lembrar dos detalhes. Porém, a família conheci quase todos. Minha família morava vizinho a Seu Denisson e Zuleide. De alguma forma a gente também estava conectados. Convivi com as meninas, Denise, Deyse, Delane e Carlos Jorge. Obrigado.
ExcluirMe identificando, me chamo Zilma Nepomuceno . Morava na Av Nossa Senhora de Lourdes, uma continuação da casa que vc morava tbm. Mudei aqui para o Recife em 79 e talvez vc não lembre de mim. Outro abraço.
ResponderExcluirDesculpe. Eu com minha pressa habitual, achei que não tinha enviado a primeira identificação.
ResponderExcluirNão se preocupe. Faz parte!
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