Rio Ipanema Foto: Ariselmo Melo |
21 de Abril – Dia do Rio Ipanema
“Uma gota do Ipanema nada vale,
mas pode espelhar a alma do itinerante
ou amenizar-lhe a sede
na estrada em busca
do Oceano Eterno.”
Tobias Medeiros
Domingo. Logo cedo nos pusemos em caminhada a Poço das Trincheiras, seguindo pela margem direita do rio. Os caminhos da ribeira é alento aos olhos, ouvidos e a alma. É a reconexão do essencial. A natureza nos abre passagem para o encontro consigo e a paz interior. Na mochila, eu e Zé Santos, levamos pouca coisa: água, alguns lanches e três aros de borracha que revestem pneus de caminhão que serviriam de boias na ousada aventura que nos propusemos.
O contraditório ser humano deseja aquilo que não tem. A cada conquista ou frustração o ciclo reinicia continuamente. A intermitência do rio Ipanema aumenta o desejo e a saudade das cheias e o fio d’água que nos apazigua. A imanência do inconsciente coletivo nos domina e nos cerca sutilmente. É preciso estar atento e vigilante, pois a força é tanta que pode ser fatal. A história não nega!
Ipanema - grito espontâneo
que extrapolou o leito.
O silêncio falta mais alto.
Envergonhado porque muitos
não podem falar.
Icemos a palavra, pendão desfraldado
a balançar
a esperança
da Parusia.
(Ipanema, “O Grito”, Tobias Medeiros, 1993)
Rio Ipanema, Santana do Ipanema
Em tempos imemoriais sua água era doce, mas o sangue de mortes injustas resultante de luta insana pelo poder entre povos indígenas ancestrais contaminou suas águas, tornando-a salobra, para que jamais fosse esquecida a cruel penalidade. A partir daí os tradicionais fulni-ôs o batizaram de “Ipanema”, rio de água ruim. Ainda assim, até os anos 60 as águas das cacimbas cavadas em seu leito foram a única fonte de abastecimento da cidade, transportadas em ancoretas nos lombos dos jumentos até que, ao olharem pra trás, se encantaram e viraram estátuas de cimento na praça da cidade. Tangedor e o jumento imortalizaram a saga. É muito mais que um rio: é diversão, pescaria e inspiração aos poetas, cronistas, contistas, cantores, repentistas e violeiros.
Nasce o rio Ipanema com o nome de rio Mimoso nas imediações da serra do Ororubá, município de Pesqueira PE, distante 30 km da sede municipal. Percorre 220 km até a foz, na Barra do Ipanema, município de Belo Monte. Dizem que no ciclo de 15 a 20 anos toma cheias memoráveis. Em cada século, pelo menos uma enchente é destruidora. Dizem que foi assim em 1941. Em 2020, destruiu casas e construções ribeirinhas, deixando centenas de famílias desabrigadas.
No final dos anos 80, num fim de semana, quinze dias depois da última cheia quando o nível das águas se mantinha no nível propício para banhos, pescarias e outras atividades de lazer, havia chegado o tempo ideal para descermos o rio seguindo seu curso em boias. Sua coloração já havia estabilizado, mudando de barrenta para verde-esmeralda simbolizando sua preciosidade, ainda que salobra.
Andamos rápido para ganhar tempo, pois não sabíamos em quanto tempo a correnteza do rio nos levaria para fazer o percurso aproximado de 8 km entre Poço das Trincheiras e Santana, boiando em aros de borracha pelo seu curso natural.
Ipanema, Poço das Trincheiras AL, 1989
Foto: autor
O rio Ipanema chega em Alagoas no município de Poço das Trincheiras. Margeia a cidade enfeitando uma das cenas urbanas mais bonitas do percurso: trecho raso e largo, cravejado de pequenas rochas, seixos e incontáveis pedregulhos que aceleram a descida das águas transformando-as em corredeiras que alardeiam aos ventos seu brado de vitória de superação dos obstáculos. Espremidas nas fendas encontram caminhos sinuosos girando como o encantado balé de sonho de um dia de verão proporcionando espetáculo aos olhos que contemplam o infinito mistério da gravidade combinada de areias, pedras e águas. “Todas as coisas têm o seu mistério e a poesia é o mistério que todas as coisas encerram”.
Craibeiras
Serra do Almeida
Pedaço do Serra do Poço – Coletes
Cruzeiro
Serrote da manga
Do lado direito do Ipanema:
Serrote dos Macacos.
Leito nu
Salpicado de pedras e grande lajedos.
Tudo
Se apagando
Na tela da imaginação.
(Ipanema, “A paisagem do filme”, Tobias Medeiros, 1993)
Impressiona o bosque natural de craibeiras que compõe a paisagem. Ali encontram solo arenoso e ideal, excessivamente pedregoso, berçário ideal de multiplicação da espécie. Em reverência e contrapartida, embelezam e lançam suas flores aos ventos e levadas nas águas rio abaixo no gesto de eterna gratidão à sobrevivência. A craibeira é a árvore símbolo de Alagoas, desde 1985. É endêmica de áreas arenosas, principalmente às margens de rios e riachos temporários. Nos barrancos da ribeira, ramas de ipomeias purpúreas tocavam à flor d’água adornando as ribeiras.
No momento em que se inflava às boias de borracha, uma delas estourou, inutilizando-a. Restaram apenas as peças dos aventureiros. Entre 10 e 11 horas, pouco abaixo das corredeiras da urbe, iniciamos a navegação nas águas do Panema em direção a Santana.
Depois de nos afastar da cidade, o rio vai descortinando pouco a pouco a imponência da serra do Poço. Os ventos se dissiparam e a correnteza do rio se fez calmaria. Mansamente vamos contornando a majestosa montanha limítrofe. Tudo era intenso e silente. Os navegadores de boias de borracha singravam placidamente contemplando a boniteza escondida do rio de água ruim a serpentear caminhos de superação das barreiras naturais.
Rio Ipanema, ao fundo Serra do Poço
Foto: Ariselmo Melo
Em alguns trechos era impossível progredir pelo bloqueio de rochas imensas e lajeiros. Em outros, ainda, ruralistas privatizaram o rio com cerca de arame farpado, obrigando-nos a contornar por terra firme em busca do próximo trecho navegável.
Passamos pelo Povoado Jorge. Adiante encontramos novas corredeiras e, logo após, remanso predominava no seu leito.
Rio Ipanema. Foto Ariselmo Melo
Próximo ao destino, grandes blocos de rocha simulavam uma alameda incluindo craibeiras, mulungus e baraúnas como se perfilassem em saudação às terras de Senhora Santana. Assoreamento largo se apresentou à frente, forçando as águas a se dividirem em dois grandes braços para superar e avançar os espaços laterais dos bancos de areia. Quando aportamos no largo da barragem já se aquietava à tarde e as boias danificadas. O frio e o cansaço já nos dominavam, escancarando enrugamento da pele castigada pela exposição excessiva às águas.
Fim da jornada fluvial e experiencial. Saudação aos ancestrais fulni-ôs que lhe deram nome e significado. Ipanema: água ruim; sagrada é a sua existência. Aos céus louvação! No meu peito deserto e insalubre parte de mim que faltava chegou. Não posso definir aquele azul...
Ipanema!
- Vestígios de um rio mar...
- Fonte de vida – água.
- Esperança do caminhante!
- Estrada a qualquer bandeirante.
- Regressa ao Oceano Eterno onde se gerou.
- Símbolo do homem!
(Ipanema, “A beleza do Ipanema”, Tobias Medeiros, 1993)
Rio Ipanema. Foto Ariselmo Melo |
Abril 2021
Beleza, João Neto. Ótimas lembranças do Rio Ipanema
ResponderExcluirValeu Bartô. Obrigado!
Excluir“...trecho raso e largo, cravejado de pequenas rochas, seixos e incontáveis pedregulhos que aceleram a descida das águas transformando-as em corredeiras que alardeiam aos ventos seu brado de vitória de superação dos obstáculos.” Mais que uma narrativa em prosa, trata-se de uma declaração de amor ao rio que passou em sua vida e o seu coração até hoje se deixa levar. Parabéns, João!
ResponderExcluirValeu Hayton, obrigado! Não posso definir aquele azul, não era do céu, não era do mar. Foi o rio que passou e ainda passa...
ExcluirMuito bom João
ResponderExcluiro Rio Ipanema ainda vive!
Viva o rio Ipanema !!! Valeu!!
ExcluirQue beleza de homenagem ao rio, que durante um período de minha vida fez parte do meu olhar, narrada com prosa e versos que abrilhantaram a narrativa.
ResponderExcluirValeu Fernando. Marcas do que se foi. Sonhos que vamos ter, como todo dia nasce novo em cada amanhecer...
ExcluirAndei muito pelas margens deste rio de minha vida, infante e púbere. Fomos amigos, confidentes, companheiro em horas boas e não tão boas. Cúmplice de crimes e pecados que suas águas afogaram, levaram para o mar. Hoje quando nos vemos, agimos como dois velhos que nada temos mais a dizer um ao outro. E choramos por dentro, por aceitar que seja assim. Parabéns! Velho amigo, feliz aniversário, querido rio Ipanema.
ResponderExcluirCada santanense tem sua própria história com o Panema. Viva o rio Ipanema. Valeu Fábio. Obrigado pela leitura e comentário.
ExcluirFalardo k
ResponderExcluirValeu Xará. Mensagem recebida via zap.
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