A poesia pirotécnica de Zuza Fogueteiro




Festa de Senhora Santana


O mês junino é o mês da essência nordestina. Costumes e tradições que fortalecem e eternizam nossa identidade. Beleza sem explicação que vai chegando sem a gente perceber. Gil e Caetano, conseguem descrever esse estado de espírito de forma sublime nos versos da canção “São João Xangô Menino”: “... Céu de estrela sem destino de beleza sem razão”. “Fogo, fogo de artifício, quero ser sempre um menino. As estrelas desse mundo Xangô, ai São João Xangô Menino. Viva São João!”(Ouça)


A história da pirotecnia provavelmente iniciou-se na Ásia na pré-história. Mas, é possível afirmar que a pólvora foi fabricada pela primeira vez, por acaso, na China há cerca de 2000 anos. Um alquimista chinês juntou acidentalmente salitre (nitrato de potássio), enxofre, carvão e aqueceu a mistura. Esta mistura secou como um pó negro, floculante, que quando queimado apresentava grande desprendimento de fumaça e chamas. Tal produto recebeu o nome de huo yao (fogo químico) e posteriormente ficou conhecida como pólvora.


Os chamados fogos de artifício datam de alguns milhares de anos antes de Cristo, isto é, em uma época muito anterior ao conhecimento da pólvora. Surgiram quando se descobriu que pedaços de bambus ainda verdes explodiam quando colocados em fogueira. Isso ocorria devido ao fato de que os bambus crescem muito depressa. Com isso, formam-se bolsas de ar e de seiva, que ficam presas dentro da planta, inchando e explodindo quando aquecidas. Os ruídos resultantes assustaram inicialmente os chineses. No entanto, eles passaram a jogar caules verdes de bambus (pao chuck) em fogueiras durante festivais e comemorações com o objetivo de assustar maus espíritos.

Mais de 2000 anos depois, foi observado que se bambus ocos fossem recheados com o já conhecido "fogo químico" e lançados ao fogo, o ruído resultante era muito maior. Eram os primeiros fogos de artifício a serem fabricados como conhecemos hoje.

Só no século XII, a pólvora passou a protagonizar shows pirotécnicos. Eram ainda rastilhos que não saíam do chão. Antes de subir aos céus, os fogos ganharam cores. O primeiro registro disso vem do século XIV. Para celebrar São Giovani, os moradores de Florença resolveram incorporar outros elementos à pólvora.

O rei britânico Henrique V levou tão a sério que contratou um artesão para confeccionar e disparar fogos a partir de um barco no rio Tâmisa. Os portugueses entraram na onda e registros históricos dão conta de que, para celebrar o fato de terem descoberto o Brasil, eles realizaram o nosso primeiro e rudimentar espetáculo pirotécnico já em 1500.

A tecnologia também estava à disposição dos santanenses pelas mãos do artífice Zuza Fogueteiro. O mago dos fogos. Toda criança é fascinada pela magia dos fogos de artifício. Criança e fogos de artifício remetem-nos às lembranças do mestre Zuza Fogueteiro, artesão habilidoso na produção de fogos! É engraçado que essa sedução dos fogos de artifício ganha relevância nas festividades de junho e julho. Parece-nos que esse deslumbramento está contido na memória afetiva do povo nordestino, principalmente nas cidades interioranas onde ainda se mantém intenso o uso da simbologia nos rituais religiosos.

Cambaleando entre alegrias e tristezas, meros mortais de pouca fé, precisamos de motivação exterior para justificar alegrias contidas e minguadas, tendo o céu como cenário, a queima dos fogos está diretamente relacionada no reforço da alegria e exaltação a celebrações, sejam religiosas ou mundanas.

Zuza era um homem bastante conhecido na região. Dominava a produção artesanal de fogos como poucos. Era trabalho meticuloso. Tinha consciência de que qualquer deslize podia lhe custar amputação de membros e até a vida.

Recordo-o trabalhando na sua residência na rua Tertuliano Nepomuceno, bem próximo ao trecho do aterro, um dos trajetos que eu fazia de casa para o colégio estadual professor Deraldo Campos, atual Mileno Ferreira.

Nu da cintura para cima exibia, com orgulho, sua enorme pança. Era branco, forte, alto e meio cabeçudo. Tagarela e espirituoso gabava-se da profissão. Produzia foguetes, que era um produto mais popular e amplamente utilizado nas festas religiosas e outras comemorações até os dias de hoje. Ele mesmo levava e se encarregava da execução da queima dos fogos durante os trajetos das procissões. Além disso, produzia chuvinha, traque e "beijo de moça", um explosivo no formato de triângulo, bem pequeno, de potente explosão!

Era artífice de fogos artesanais que encantava aos espectadores. Tipos exóticos de fogos para momentos de pompa e circunstância. Fornecia fogos para todas as festas religiosas da região, principalmente para as festas de São Cristovão, São Pedro e a maior de todas, a festa de Senhora Santana, nossa padroeira!


Festa de Senhora Santana

Por ocasião do encerramento das festividades da padroeira, a cada ano produzia algo inédito. Lembro-me das rodas de fogo. Na última noite o Padre Cirilo anunciava e pedia para que o povo assistisse à exibição.

A roda de fogo era montada com várias espirais multicoloridas e intercaladas instaladas no mastro na praça da matriz, imitando a figura geométrica da carapaça do caracol, visto em abundância no leito do rio Ipanema, grudado em seixos. Os arcos luminosos queimavam, giravam e aceleravam, um a um, impulsionados pela pólvora colorida em combustão. Um clarão multicolorido e medonho sobressaltava o povo. Fagulhas precipitavam-se sobre a multidão como vagalumes. Parecia chuva de estrelas. Espetáculo de espanto e beleza nas noites frias de julho. Ao final, ovação!

Os momentos eram aguardados com ansiedade pelo plateia atônita. Para as crianças era o momento mais aguardado da noite. Quando iniciava, era deslumbramento e êxtase! Saudação máxima em honra a Senhora Santana! A multidão pasmada ficava boquiaberta diante de habilidade pirotécnica do mago dos fogos multicoloridos. Explosão de singeleza e emoção.

No ano seguinte fez um barco, imitando os antigos barqueiros na travessia do rio Ipanema. Um grande arame era esticado de um lado a outro da praça, amarrado nos mastros especiais para a ocasião. De um dos lados ficava um pequeno barco feito de madeira. Quando iniciava a queima, a força da pólvora colorida em chamas gerava força que impulsionava o barco fazendo-o deslizar sobre o arame de uma extremidade a outra. Outra invenção inédita. Meninos e adultos em êxtase.

Hoje fico a pensar que a ideia do barco tinha inspiração nas travessias dos barqueiros santanenses para o outro lado da cidade que começava a se expandir nos bairros que hoje conhecemos como Domingos Acácio, chamado antigamente de Rabo da Gata e Floresta. As travessias de barco transportavam pessoas e automóveis. Há fotos de época, com registro de veículos sobre tábuas nas canoas fazendo a travessia.

Numa das mãos exibia a marca da labuta e do risco constante de lidar com o perigo: já não tinha um dos dedos da mão. Vacilos e erros no ofício custam caro. O corpo fora marcado. Entretanto, Zuza não dava muita importância para isso. Zombava dos meninos dizendo que ia inventar algo muito mais sofisticado no ano vindouro. Ficávamos aguardando-o um ano inteiro para saber o que estaria aprontando. Era sigilo.

Na procissão de encerramento da Festa de Senhora Santana era peregrino e trabalhador ao mesmo tempo. Acompanhava o cortejo soltando os foguetes nos pontos estratégicos da peregrinação. Eram momentos de bênçãos e louvores. Aos poucos fomos crescendo e os meninos foram ficando para trás, dando lugar aos homens incrédulos, cuja essência parece ter sido queimada como a beleza fugaz dos fogos de artifício.

Parece que nos perdemos pelo caminho. Nunca mais ouvi falar do pirotécnico. Assim como o fogo; brilhou, queimou e se encantou... Virou chama ardente na memória do povo.
"Cruzamos os limites, exploramos as fronteiras. Fronteiras do coração, fronteiras da alma. Voltamos para casa tendo aprendido grandes lições do nosso destino compartilhado, porque o propósito de nossas viagens seja para dentro ou para fora de nós, não é só para ver o que não foi visto, mas trazer as visões para compartilhar com quem vivemos, pois mesmo que a gente não perceba tudo vai cumprindo o seu destino..."
    

                        Publicação de julho de 2016 e revisado em abril de 2021

Comentários

  1. Isso mesmo João, Zuza fazia poesia...

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  2. Ninguém faz ideia do tanto de história que existe por trás de uma bomba “de 50” daquelas que explodíamos debaixo de uma lata de leite vazia!

    Parabéns pelo texto, João, que nos transporta para um tempo em que éramos felizes e sabíamos disso!

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    1. Agora eu entendo melhor o esforço que minha mãe fazia para eu assistisse à exibição dos barcos e das rodas de fogo de Zuza.

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  3. Assim surgiu a pólvora na China e Zuza Fogueteiro aperfeiçoou para deleite dos Santanense nas Novenas de Senhora Santa Ana.
    Esse buraquinho no arame indo de um lado para o outro e retornando era o máximo.. Sem contar as varetas lemes dos foguetes que espocavam no ar e a meninada saiu em busca delas para resgatar. Era campeão quem mais recolhesse varetas..
    Parabéns, João de Liô!!

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  4. Boa noite Xará!
    Mais um belo registro...transcrito com muita fidelidade...
    Parabéns.

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  5. Escutei tbm o chiado dos espirais coloridos...voltei no tempo e foi muito bom.... gratidão, João Neto, vc surpreendendo sempre.
    O acidente que culminou com o falecimento dele está ligado diretamente com a minha mãe, nas minhas lembranças, ela sobrevivia numa espécie de UTI domiciliar, havia um tubo de oxigênio no quarto dela lá em casa ( mesma rua que a sua, Av: NSª SRª de Lourdes) e pensamos subitamente que ele que havia explodido. Foi um susto absurdo!
    Aquela data foi lastimável.
    Zilma Nepomuceno Carnaúba

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  6. zuza é o meu avô. 😍❤

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  7. Meu avô, sou filha do filho dele Sirineu Lucas, que hoje também infelizmente ñ está entre nós, painho seguiu sua caminhada com seu legado de fogueteiro como pôde, dava suas festa no estado de Pernambuco como vô Zuza fazia, era a festa mais esperada por todos, todas as noites... Saudades ❤😩

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