Naquele dia acordei mais cedo. Chovia muito. Estava ansioso e apreensivo com o que aconteceria naquela manhã. Pensativo, apressei as tarefas matinais. Sabia que às nove horas teria um compromisso compulsório no fórum local. Estava entre os vinte e um convocados para o sorteio dos sete jurados que participariam do julgamento de Tonho Biriba. Iria forçadamente, pois se dependesse da minha vontade, recusaria. Por outro lado, poderia acompanhar de perto o desfecho judicial do trágico acontecimento.
Tonho envolveu-se no assassinato de jogador de futebol do Ipiranga Futebol Clube. O crime acontecera por banalidades. Dizem que uma simples discussão sobre a fraca atuação do time no estádio Arnon de Melo. Testemunhas afirmaram que não fora ele o autor do disparo que levou à morte de Cicinho Sorriso, mas infelizmente estava no momento fatídico. Dizem que interferiu no momento, facilitando que se chegasse ao termo. Foi considerado cúmplice e foragido da justiça. O desconhecido autor do disparo escafedeu-se. Até hoje não se sabe do seu paradeiro. Tonho Biriba após inúmeras fugas e sem paz, resolvera retornar à cidade para assumir sua culpa.
Eu estava inquieto e uma hora antes da sessão me dirigi ao local. Quando lá cheguei, já havia muita gente. Encontrei muitos conhecidos e, perdido nos meus pensamentos, coração acelerado, desejava fugir do local. Antes do início do sorteio dos jurados, o juiz que iria conduzir o julgamento reuniu todos os convocados para esclarecer procedimentos processuais e a conduta dos convocados.
Fiquei surpreso e incomodado com a prática do magistrado. Fiquei pensando comigo se tudo aquilo seria necessário, pois tinha certeza de que eu não seria escolhido. Porém pensei: e se for? O que fazer? Sentia cada vez mais o coração apertado, contudo preferi me excluir daquela situação incômoda, pelo menos, mentalmente. Já havia chegado o réu escoltado pela polícia.
O tribunal já estava composto pelo juiz, assessorado pelo promotor público e o advogado de defesa. O sorteio seria iniciado. A cada nome pronunciado eu suspirava aliviado, até que senti o corpo totalmente gelado, acontecera o que não queria. Ouvi meu nome ser pronunciado! Parei por momento. Respirei fundo. Tinha que agir rapidamente! Em segundos pensei no que dizer naquele imenso salão repleto de curiosos. De repente, uma luz me iluminou! No meio do público, levantei a mão e pedi ao juiz para falar:
- Senhor juiz o réu é meu amigo de infância!
Os presentes ficaram pasmados! Naquele momento, o juiz e o promotor conversaram baixinho e para meu alívio, aceitaram a minha argumentação, declarando-me inapto à participação do júri.
Estava diante do meu amigo Tonho Biriba. Cumprimentamo-nos brevemente com o olhar. Eu não sabia se estava contente ou se estava triste com o meu gesto.
Participar daquele evento seria grande dilema pois uma vida tinha sido ceifada por futilidade. Devemos ter consciência de que devemos pagar pelos nossos erros. Não há como fugir desta realidade por mais dura que seja. Por outro lado, dar testemunho público da nossa amizade tinha requerido muito mais desprendimento do que a minha atuação e votação oculta.
O julgamento prosseguiu normalmente com as interpelações usuais, e no final, o magistrado proclamou o resultado da sentença: absolvição do réu. Tonho Biriba foi libertado naquela mesma tarde.
Encontramo-nos várias vezes depois do episódio. Continuamos a amizade normalmente. Jamais houve qualquer comentário sobre aquele dia.
Tonho Biriba era filho mais jovem da sua família. Tornou-se alcoólatra e cada vez mais se entregava ao vício. Várias vezes fora preso em decorrência de confusões em bares.
Moramos na mesma rua por muitos anos. Adolescentes, fomos parceiros em muitas traquinagens; brincadeiras no meio da rua; garrafão, queimado e “o Rei mandou dizer...”
Roubar mangas e goiabas no Colégio Sagrada Família era um desafio e tanto. De vez em quando o padre Cirilo chegava de repente. Era fruta para todo lado e pernas para que te quero.
E o despertar da paixão e paquera pela mesma menina da rua? Claro que não deu nada certo, era coisa de menino.
E o São João? Quem não se lembra da ronqueira? Artefato portátil feito com um pedaço de cano de ferro utilizando como pólvora a cabeça de fósforo. Uns dez centímetros, com um pequeno furo, onde colocávamos a pólvora do fósforo no orifício e com um prego batíamos no meio fio, provocando pequenos estouros, semelhante a um traque. Era a saída para quem não tinha dinheiro para comprar fogos industrializados. Era só alegria!
E os patinetes e carrinhos de rolimã... Esses brinquedos faziam um barulho infernal, além de estragar as calçadas de cimento. A criançada ficava com medo de Seu Costinha aparecer de repente, e em nome da lei, confiscar os brinquedos e amedrontar os meninos. Como era comissário de menores corríamos com medo dele.
Tonho Biriba fora o parceiro mais frequente na infância. E as partidas de futebol à noite, no meio da rua... Sensações e vivências que não se apagaram. Laços foram criados.
Sua vida adulta foi conflituosa. Problemas familiares afetaram-no duramente provocando desestabilização emocional. Bebia cada vez mais. Fora preso outras vezes. Visitei-o na prisão. Estava envelhecido e tristonho.
Internado em consequência de alcoolismo, veio a falecer numa tarde chuvosa. Não havia lugar para o corpo ser velado. Conseguimos autorização o compadre Luiz Euclides para que o corpo fosse velado na capela de Nossa Senhora Aparecida da família Euclides. Pedimos ao padre Delorizano para rezar as orações fúnebres. Levamos flores para a urna funerária. Estava tudo conforme as tradições.
Foi sepultado sob a chuva forte naquela tarde com alguns poucos presentes. Choramos lágrimas disfarçadas que se misturavam à chuva da tarde. A noite foi chegando. No céu a estrela d’alva apareceu intensamente brilhante. Anoiteceu. Amanhã será um novo dia. Uma existência se calava sob o chão frio. Sua vida encerrava a dura e conflituosa jornada terrena.
Publicação
de janeiro de 2006, revisada em janeiro de 2021.
Parabéns, João. Muito bom
ResponderExcluirValeu Bartô, obrigado.
Excluir“... dar testemunho público da nossa amizade tinha requerido muito mais desprendimento do que a minha atuação e votação oculta.” Parabéns, João, não só pelo texto, como pela decisão tomada.
ResponderExcluirValeu, obrigado!
ExcluirEssa situação de participar de juri popular fez parte de meu cotidiano em certo período. Vira e mexe era convocado para participar do sorteio de jurados e em algumas vezes de ser contemplado, também a contragosto, para fazer parte dos julgadores. Em nenhuma das vezes, porém, tive a minha frente, felizmente, alguém conhecido na cadeira do réu. Certamente me sentiria, tal qual você João, em um enorme desconforto; por isso sua atitude de externar a amizade foi bastante louvável.
ResponderExcluirFernando, foi um momento decisivo. Obrigado!
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAcho que já disse o que vou dizer, mas a bem da verdade nunca digo usando as mesmas palavras. Aí é que está a diferença: Quem escreve, deve ter consciência que aquilo que está contando vai causar algo em alguém. Alguns poderão comentar após ler: "Poxa! Já vivi fatos tão semelhantes!" Outro dirá: "Que pena! Poderia ter ocorrido de outro jeito, o que aconteceu com os protagonistas.", ou "Que isso sirva de lição, para alguém..." Confesso que todos esses comentários cabem a minha pessoa. Já fui convocado para júri da justiça, e provei do mesmo fel que o cronista provou. Os momentos de infância idênticos. Mas o desfecho é que arrebatador! Parabéns caro cronista, meu amigo João Neto. O resgate desses seus escritos depois de 15 anos, oportunizando-nos aflorar tão nobres sentimentos! Valeu! Aliás, só vale! E muito! ass: Fabio Campos
ExcluirObrigado, caro confrade Fábio pela gentileza das suas palavras.
ExcluirRevelar publicamente que era amigo de Tonho Biriba foi uma decisão corajosa. Parabéns pelo ótimo texto.
ResponderExcluirObrigado Oliveira. Era a melhor decisão a tomar, sem dúvida!
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